VILA PRAIA DE ÂNCORA: CONTRA-ALMIRANTE JORGE MAIA RAMOS PEREIRA – UM RETRATO
Na homenagem da população de Vila Praia de Âncora ao Contra-Almirante Jorge Maia Ramos Pereira, coube ao professor Celestino Ribeiro a intervenção de fundo, que constitui um retrato bastante completo do homenageado e que reproduzimos:
“Permitam-me partilhar com todos a honra pessoal sentida por tomar parte neste ato e nele usar da palavra. Em ano de centenário da elevação de Gontinhães a Vila Praia de Âncora é toda uma comunidade que se ergue em uníssono, lembrando os seus ilustres, dedicados aos engrandecimentos dos lugares e das suas gentes. A família Ramos Pereira, nas três gerações de nomes, José Bento Ramos Pereira, Luís Inocêncio Ramos Pereira e Jorge Maia Ramos Pereira, estão de forma indelével associados a Vila Praia de Âncora e ao Vale do Âncora. Hoje, neste ato, cabe-nos lembrar Jorge Maia Ramos Pereira, o Contra-Almirante.
E porquê lembrar em aniversário de falecimento a figura, a obra, a pessoa que foi Jorge Maia Ramos Pereira?
Tomando as palavras escritas na Revista da Armada em Maio de 2001, num artigo síntese assinado pelo Contra-Almirante Joaquim Félix António sobre as comemorações o 1º centenário do nascimento do Vice-Almirante, Jorge Maia “Ramos Pereira não deixou descendentes directos, é certo. Mas deixou obra, designadamente no campo da radioelectricidade e das radiocomunicações, e no âmbito do Instituto Superior Naval de Guerra, e uma vida pessoal, familiar, social, profissional, militar e política, que o creditam como Homem de eleição a apontar como exemplo a seguir pelas gerações actuais e vindouras, e digno de figurar na Galeria de Honra dos Grandes Portugueses!”.
Ora, é nesse propósito, de uma partida que deixa legado, de uma ausência que não esconde a existência, que hoje cumprimos, com este ato, um exercício de cidadania que centra em Vila Praia de Âncora e no seu centenário, os valores da liberdade, do progresso, da singularidade que faz a diferença na construção social, e que afirma que o Contra-Almirante têm aqui os seus descentes, o povo que não o esquece.
Jorge Maia Ramos Pereira será sempre um Ancorense de referência, um Homem que fez do seu, e no seu, tempo um exemplo que nos honra e que nos dá sentido de pertença à comunidade.
Jorge Maia Ramos Pereira nasce a 6 de Abril de 1901 na freguesia de Gontinhães, hoje Vila Praia de Âncora. A influência paterna será seguramente um marco de elevada referência na sua formação. Filho do Dr. Luís Inocêncio Ramos Pereira e de Dona Cecília Maria Ramos Pereira, será pelo pai a sua ligação a Vila Praia de Âncora e será, como o próprio refere, no cumprimento do sonho do pai que um dia acabará por adquirir uma casa (Casa do Monte) em Vila Praia de Âncora. Republicano assumido e convicto, o dr. Luís Ramos Pereira assume o cargo de Deputado à Assembleia Constituinte de 1911 (1ª República) pelo círculo de Viana do Castelo, sendo sucessivamente eleito senador até 1926. É ele o responsável pela elevação de Gontinhães a Vila Praia de Âncora, a 8 de Julho de 1924. A sua ligação ao Alto Minho deriva, ainda assim, do seu avô paterno. Natural da Freguesia de Riba de Âncora, no Vale do Âncora, José Bento Ramos Pereira emigra para o Brasil aos 14 anos. De regresso, torna-se benemérito, uma característica que deixará de legado, assumindo-se, mais tarde, uma nota de identidade da família Ramos Pereira.
É neste enquadramento familiar que se estrutura a formação de carácter daquele que ficaria conhecido em Vila Praia de Âncora como o Sr. Almirante.
A sua formação académica começa com o ensino doméstico. Posteriormente passa a aluno do colégio militar, terminando o curso em 1918. Nesse mesmo ano incorpora o exército. Frequenta o primeiro ano do Instituto Superior Técnico (Lisboa), mas muda a sua opção nessa altura. Faz então as preparatórias para a Escola Naval da Escola Politécnica em 1919/1920. Aos 19 anos, em 1920, o então 1º Sargento Cadete Jorge Maia Ramos Pereira é transferido para o serviço da Armada como Aspirante. A 30 de Junho de 1923 é o primeiro classificado do Curso da Escola Naval. Passa a Guarda Marinha em 1924, sendo depois promovido a 2º Tenente em 1924. É com esta patente que se evidenciam os seus valores ao nível das radiocomunicações, e a par da sua capacidade técnica e conhecimento científico, revela-se também um pedagogo. Em 1927/1928 faz o Curso de Especialização em Radiotelegrafia e Motores de Combustão Interna, montando um posto emissor-recetor de ondas curtas em sua casa. Em 1932 assume a função de professor dos cursos de telegrafia e comunicações. É ainda na altura membro da Comissão de Tradução para Português do Código Internacional de Sinais Visuais e Radiotelegráficos, e, em 1936, é incumbido de restaurar e modernizar os cursos de TSF na Escola de Mecânicos. Assume o posto de 2º Comandante da Escola de Mecânicos em 1938, mantendo-se como instrutor dos cursos de radiotelegrafia.
No ano de 1939, mais concretamente a 11 de Maio, surge uma mudança na sua vida pessoal, casando com Maria da Graça Lopes Mendonça, neta de Henrique Lopes de Mendonça (1856-1931), autor da letra “A Portuguesa”, que junta à música composta por Alfredo Keil é hoje Hino Nacional de Portugal, e sobrinha-neta de Rafael e Columbano Bordalo Pinheiro.
O seu círculo familiar cresce em referências republicanas. Há ainda necessariamente um quadro de referências interventivas que moldam e estruturam necessariamente o carácter de Jorge Maia Ramos Pereira.
As suas qualidades humanistas, aliadas à sua capacidade intelectual e manifestação de interesses culturais e aprofundamento científico levam-no à procura incessante de novas oportunidades. Em 1958 frequenta o Naval Command Course for Senior Foreign Officers no Naval
War College, em Newport, Estados Unidos da América, primando pela capacidade de em contextos aparentemente difíceis, fruto da sua origem (Portugal) e das relações internacionais EUA-URSS, optar por livremente dissertar sobre “A educação e a ciência na competição comunista”.
É assim de forma natural que a sua carreira militar prossegue chegando a Almirante, depois de passar por Capitão de Fragata em 1953.
Jorge Maia Ramos Pereira revelou uma enorme curiosidade e capacidade para persistir na experimentação ao nível da telegrafia sem fios.
Em 1928 construiu e montou um posto emissor-recetor de ondas curtas.
A 28 de Abril desse mesmo ano iniciou, a título experimental e de estudo, comunicações com amadores de todo o Mundo e com alguns navios. Transmitiu e recebeu diversas ordens de serviço a pedido de entidades oficiais. Posteriormente transferiu o seu equipamento para o “Vasco da Gama” quando nele embarcou e assim continuou os seus trabalhos em onda curta. Efetuou alterações (adaptações) no transmissor MC3 e com este equipamento assegurou comunicações com Lisboa durante a comissão a Angola. Até Dezembro de 1929 colaborou com a Marinha, para que fossem possíveis as comunicações radiotelegráficas entre os navios e o Ministério da Marinha.
Posteriormente, por necessidade e obrigação passa a desenvolver e a pôr em prática o seu conhecimento na Armada Portuguesa, passando por momentos em que o seu papel é mais relevante na qualidade de supervisor e responsável pela construção de estações e rádio faróis, e por outros em que se assume pedagogo, quer de forma direta na direção dos cursos, quer indireta, no trabalho desenvolvido no Museu e na colaboração da Anais do Clube Militar Naval.
Em 1937 iniciaram os cursos de TSF na Escola de Mecânicos. O então Tenente Ramos Pereira foi o seu primeiro Diretor. Mas a sua ação enquanto pedagogo não se restringiu apenas à esfera da formação ativa desta escola. A sua tenacidade na disseminação do saber e na disponibilidade do acesso ao ensino, se não toda, a uma grande parte da população portuguesa, numa altura em que Portugal estava submetido às agruras de uma ditadura que se mostrava relutante à promoção do ensino, levaram-no a várias práticas filantrópicas sendo a mais emblemática para Vila Praia de Âncora, e que retomaremos adiante, a criação da Fundação de Vila Praia de Âncora, estatutariamente “Grupo de Promoção Escolar do Vale do Âncora”.
Jorge Maia Ramos Pereira foi um escritor de lições.
Exemplo disso são as suas publicações, quase sempre associadas a momentos de aprendizagem. De entre as suas obras destacam-se “A propagação das ondas electromagnéticas na superfície da Terra” (1934), “O transmissor de onda média e longa, de 2 kW, tipo M 11 – Standard” (1935), “Radioelectricidade Elementar” (1952), ou “Gago Coutinho geógrafo” (1973).
À data da publicação de “A propagação das ondas electromagnéticas na superfície da Terra” (1934) não existia disseminado nos diversos circuitos editoriais um extenso e pedagógico manual. Jorge Maia, tomando a dianteira, prepara-se assim para se assumir um “construtor” de manuais de aprendizagem. Preparado científica e pedagogicamente, ao que não será alheio o seu exercício na formação de quadros e na gestão pedagógica dos cursos de TSF, em 1952 Jorge Maia Ramos Pereira faz publicar um verdadeiro manual, que se assume como tal, sobre bioeletricidade -
“Radioelectricidade Elementar” (1952).
Mas o seu percurso paralelo de vida, alimentado por valores progressistas e de responsabilidade nas relações sociais, serão o que de maior relevo ficará na memória dos que com ele conviveram.
Nunca deixará, contudo, de afirmar ao longo da sua vida a figura de saber, de capacidade técnica e de democrata, num país governado em ditadura.
Sempre presente na nossa comunidade, concebe e implementa um projeto, de enorme complexidade, face à necessária configuração jurídica que enquadra o movimento associativo em Portugal, e também fruto do difícil acesso aos recursos financeiros que permitem levar a cabo tão nobre intuito – a criação do Grupo de Promoção Escolar do Vale do Âncora.
Inicialmente, desde 1960, como Fundação de Vila Praia de Âncora, foram necessários praticamente 10 anos para que os estatutos pudessem ser aprovados e publicados, o que veio a acontecer em 1972, e com o nome de Grupo de Promoção Escolar de Vila Praia de Âncora.
Esta foi uma obra de beneficência, mas sobretudo de devoção ao patrocínio do saber e do enriquecimento cultural e científico num Portugal que mutilava as aspirações de progressão escolar aos seus cidadãos. Jorge Maia Ramos Pereira usa toda a sua influência, toda a sua capacidade para organizar eventos dos que recolhia dividendos para a associação, que se somariam aos contributos individuais e coletivos e quotizações para, depois, tornar possível a frequência da escola a diversos alunos oriundos de famílias com maiores dificuldades. A análise aos relatórios do exercício anual do Grupo de Promoção Escolar de Vila Praia de Âncora revela o escrupuloso rigor com que Jorge Maia Ramos Pereira acompanhava a evolução escolar dos alunos. É certo que ele mesmo os orientava nas escolhas das suas formações e no seu crescimento enquanto cidadãos, sendo lembrado por muitos que beneficiaram deste apoio e por muitas outras pessoas como alguém que não se compadecia com o erro de incúria, de pouca dedicação, mas que alentava e confortava todos os que devotavam o seu esforço à arte da aprendizagem.
A vida de Jorge Maia Ramos Pereira não pode alhear-se do contexto difícil que caracterizou Portugal durante 48 anos. Dos ideais republicanos democráticos, que com certeza se constroem primeiro no seio familiar e posteriormente em todos os campos de intervenção cívica, ficou-lhe a bravura, por vezes punitiva, de, dentro de certos limites, contrariar o regime, assumindo a verticalidade de carácter que hoje se lhe reconhece.
Assim foi, não se furtando à submissão de escrutínio e à disponibilidade para alimentar a mudança política, na candidatura, em 1969, pela oposição, no círculo eleitoral de Viana do Castelo, vendo-se bem o reconhecimento dado à sua Terra e pela sua Terra, com um resultado de 45,2% no concelho de Caminha, quando o país e o o distrito mantiveram a situação política.
Essa tónica de verticalidade esteve também presente aquando da sua demissão de Diretor do Instituto Superior Naval de Guerra.
Pesado, por isso, para si, terá sido a perseguição de um projeto democrático para Portugal, que o infortúnio da doença impediu de viver, tendo falecido a 16 de Março de 1974, praticamente um mês antes do 25 de Abril que viria a ditar o fim da ditadura em Portugal.
Jorge Maia Ramos Pereira foi reconhecido por diversas vezes, e ainda hoje assim acontece. Ficam sempre claros três aspetos fundamentais da sua figura: Carácter, Saber e Altruísmo.
São notórias as expressões de coragem e verticalidade que fizeram dele um homem observado pelo regime ditatorial vigente em Portugal.
A devoção ao saber, e especificamente no que toca à radioeletricidade e à sua aplicação à TSF foi ao longo da sua carreira reconhecido pelos seus.
Graças à sua persistência e intuição, a Armada Portuguesa foi prestigiada pelos seus serviços técnicos e disso é feita nota de reconhecimento logo após o 25 de Abril em Portugal.
Em tudo pôs dedicação, sem esperar compensação. Recebeu a Medalha Militar de Ouro da Classe de Comportamento Exemplar, o Grau de Oficial da Ordem Militar de Avis, o Grau de Comendador da Ordem Militar de Avis, o Grau de Grande Oficial da Ordem Militar de Avis, a Medalha de Ouro de Filantropia e Caridade do Instituto de Socorros a Náufragos, a Medalha Militar de Prata de Serviços Distintos, a Medalha de Mérito Militar de 1ª Classe, a Medalha Comemorativa das Campanhas do Exército Português no Estado da Índia “1954-59”, a Medalha Naval Comemorativa do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique (Ouro), o Grau de Oficial da Ordem do Império Britânico, Comendador da Ordem de Mérito Naval do Brasil, entre outras condecorações e reconhecimentos, mas seguramente que o que hoje estamos a fazer será a forma mais sublime de o a agraciar, com a gratidão pelo exemplo recebido, com a certeza de que esta é a sua comunidade, a Terra que desejou, o povo que ajudou a construir.
Vila Praia de Âncora jamais esquece os seus e por isso persistiremos na sua lembrança!”