Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

BLOGUE DO MINHO

Espaço de informação e divulgação da História, Arte, Cultura, Usos e Costumes das gentes do Minho e Galiza

BLOGUE DO MINHO

Espaço de informação e divulgação da História, Arte, Cultura, Usos e Costumes das gentes do Minho e Galiza

FALECEU VALDEMAR AVEIRO – ANTIGO CAPITÃO “BACALHEIRO” – AMIGO DA FUNDAÇÃO GIL EANNES FP

img_900x560$2017_12_29_11_31_00_323161.jpg

A Fundação Gil Eannes, FP vem manifestar publicamente o mais profundo pesar pelo falecimento hoje de Valdemar Aveiro, que foi um amigo da Fundação tendo em muito colaborado com a mesma.

“Valdemar Aveiro nasceu em Ílhavo, a 19 dezembro de 1934, no seio de uma família de pescadores. Terminada a instrução primária, começou a trabalhar como aprendiz de barbeiro. Passados dez meses empregou-se numa oficina de serralharia e, mais tarde, na construção civil. Em 1950, então com 15 anos, concorreu à Escola Profissional de Pesca em Lisboa, onde frequentou um curso de formação técnico profissional, ministrado aos futuros pescadores de dori. Durante o curso ganhou uma bolsa de estudo que lhe permitiria mais tarde tirar o Curso Geral dos Liceus e seguir depois para a Escola Náutica.

Entretanto fez uma viagem à pesca do bacalhau, na condição de Moço, a bordo do lugre motor “Viriato”, da praça de Lisboa. Chegado de viagem, em outubro de 1951, iniciou a sua vida académica em Lisboa, com residência no Stella Maris, zona de Belém, obra criada pelo Dr. Constantino Varela Cid e um grupo de amigos, para apoio aos marinheiros estrangeiros em trânsito ou aguardando embarque. Uma vez terminado o Curso Geral do Liceu, seguiu para a Escola Náutica, tendo concluído o Curso de Pilotagem em julho de 1957 e embarcado de seguida a bordo do arrastão Santa Mafalda, da Empresa de Pesca de Aveiro, como Praticante de Piloto.

No ano seguinte foi promovido a Piloto a bordo do mesmo navio, passando a Imediato do arrastão Santa Joana em 1960. Emigrou para o Canadá em 1964, na persecução de se licenciar em Medicina, um sonho que não logrou cumprir, tendo regressado a Portugal em outubro de 1965. Em 1966 embarcou como imediato no arrastão São Gonçalinho para, no ano seguinte, mudar para um navio moderno, o Santa Isabel, comandado pelo Capitão David Calão. Em 1970 assumiu o comando do mais velho arrastão português, o Santa Joana, e, dois anos depois, foi convidado para comandar o arrastão Coimbra, então em construção nos Estaleiros de S. Jacinto. Em agosto de 1988 retirou-se definitivamente por doença.

Depois de recuperado, foi convidado a colaborar com a Administração da Empresa de Pescas de S. Jacinto, sendo, desde 1991, membro do seu Conselho de Administração, lugar que ainda ocupa na atual data. Autor de um opúsculo escrito em 1970, “Os Ílhavos e as suas origens”, publicou posteriormente três livros memoriais sobre a pesca do bacalhau, que ilustrou com expressivas fotografias. São eles “80 Graus Norte”, “Histórias Desconhecidas dos Grandes Trabalhadores do Mar” e “Murmúrios do Vento”, preciosos testemunhos da vida a bordo dos navios em faina nos mares setentrionais, vida que viveu intensamente, bem à sua maneira e a seu gosto, em equipa, em família, com a sua tripulação, como faz questão de realçar.”

Fonte: Câmara Municipal de Ílhavo

QUEM ERAM AS “FAFEIRAS” DA GAFANHA DA NAZARÉ – MOÇAS DE FAFE QUE ÍAM TRABALHAR NA SECA DO BACALHAU?

461337399_8602503023103480_7867613160334914901_n.jpg

Mulheres da seca do bacalhau em 1948, Gafanha da Nazaré. (Fotografia de Maria Lamas).

Tal como o nome indica, as “fafeiras” eram moças do concelho de Fafe que migravam sazonalmente para a Gafanha da Nazaré, a fim de trabalharem na seca do bacalhau. A sua presença naquela freguesia do concelho de Ílhavo deixou marcas indeléveis na cultura local, mormente no seu folclore. A esse respeito e acerca das suas lides e modos de vida, transcrevemos a crónica de Gaspar Albino que é divulgada pelo Grupo Etnográfico da Gafanha da Nazaré.

page23fafeiras.jpg

FAFEIRAS – POR GASPAR ALBINO

Era às segundas-feiras. Logo pela manhã, dirigia-me aos correios de Aveiro em busca do sempre desejado telegrama com notícias de bordo do navio, nos mares da Terra Nova.

E era com sofreguidão que regressava ao Largo do Rossio, ao escritório da empresa, para abrir o cofre em busca da cifra que me permitia descodificar o seu conteúdo. Quase todo ele incompreensível para quem não tivesse a chave.

Ficava-se a saber do tempo que tinha feito, dos pesqueiros que o barco tinha frequentado, da saúde e da doença da tripulação, das avarias e, finalmente, a quantidade de bacalhau capturado na semana com aproximada definição dos tamanhos do peixe embarcado no porão.

Os momentos que se seguiam eram comandados pela informação que chegara: alegria pela fartura; tristeza, pela míngua. Às vezes, euforia pelas somas de bons parciais; outras, a tristeza e a dúvida que as brisas (ventos fortes, em linguagem marinheira) alimentavam de maus augúrios quanto ao resultado final da safra.

Tudo isto, entretanto, era guardado com um certo secretismo, conferindo ao ritual das segundas-feiras uma atmosfera singular que, hoje, decorridos que são tantos anos, ainda recordo com emoção.

A nova safra da pesca iniciava-se sempre ainda com o bacalhau da campanha anterior em mãos.

E era certo e sabido que ninguém me largava, ao sábado, quando me deslocava à seca na Gafanha para fazer o pagamento ao pessoal.

Começava pela ti Maria Rita (como a recordo no seu corpanzil de mulherona nos seus quarenta e tais anos que não passavam pela cara de menina que, no fundo, sempre foi) com o seu "então, que tal vamos de escama?"

E, depois, era o senhor Manuel Vareta, o carpinteiro, que, mal me pressentia, lá saltava do sobrado até ao pequeno escritório, onde eu me ia desfazendo dos envelopes das semanadas das mulheres. Os nossos olhares já continham, também eles, um código. As mais das vezes, nem trocávamos palavra sobre a pesca, mas o sorriso, ou o encolher de ombros com que ele ficava para o fim do pagamento ao pessoal, era a garantia da mensagem transmitida e bem compreendida.

Legenda da foto: Perspectiva aérea das secas da Cale da Vila com os seus estendais de peixe. Em primeiro plano a "Seca do Milena", hoje à espera de ser convertida em pólo do Museu Marítimo de Ílhavo.

O Zé Catarino, o ajudante de carpinteiro, nesta questão das capturas, vinha sempre também ajudar à missa e conforme a reacção do chefe, assim era o bulir da enchó que nunca largava.

A Fátima, a filha do guarda, o Ti Augusto, era mais afoita nos seus assumidos dezoito anos que o título de segunda encarregada não conseguia disfarçar.

E lá escorregava eu com a informação que mais tranquilizasse as fafeiras que, respondendo ao seu número na folha de férias, lá se chegavam ao postigo para receberem o soldo que guardavam, de pronto, no seio, por botão entreaberto da blusa.

É que da forma como estivesse a correr a viagem muito dependia o regresso às suas terras, lá para o Minho, para Fafe e seus arredores, onde as famílias as aguardavam para as vindimas e os namorados para aprazar casamento.

Ainda sou do tempo em que o sol mandava no trabalho das secas.

Desarreigadas da sua terra, das suas famílias, as fafeiras constituíam o grosso do pessoal que nelas trabalhava.

Na seca de Lavadores, na Barra, até dispunham dum dormitório. Mas a maior parte das moças que trabalhava nas secas da Cale da Vila vivia em grupos, em acomodações disseminadas pelo povoado, paredes meias com as famílias locais e com estas muito intimamente ligadas.

A forma como se instalavam e viviam na Gafanha, longe da sua terra, fazia com que se estabelecesse uma relação muito forte com a encarregada da sua seca.

É que, pelas décadas de 50 e de 60, também neste sector, havia uma grande fidelidade à empresa de pesca em que cada grupo trabalhava. Um grupo de jovens mulheres, quase todas solteiras e casadoiras, que se comportava de forma coesa, como se de uma irmandade se tratasse, e aceitando, de forma natural, a liderança de uma colega mais experimentada nestas andanças do trabalho nas secas.

Era com esta chefe pacificamente aceite que a encarregada tudo tratava.

Eu conto.

Mal se adivinhava o final da viagem, com o carregamento de peixe a propiciar o regresso do barco, a encarregada do secadouro, trabalhadora permanente, começava a preparar tudo para a nova safra. E lá telefonava para a chefe do grupo, lá para a sua aldeia fafense, para que o grupo se prevenisse. Os carpinteiros já andavam às voltas com as "lambretas" e os carros de mão que tinham de estar reconstruídos, afinados e lubrificados. Mas para cortar a relva, reparar as mesas de secagem, lavar e pintar com cal e metabissulfito de sódio os armazéns de peixe verde, de peixe em mãos, e de peixe seco, já era necessária a primeira leva de mulheres.

E logo que chegavam se ficava a saber quem tinha casado e, por isso, permanecia na sua terra. As neófitas já tinham metido a sua "cunha" para preencher as vagas no grupo.

Era vê-las com os seus ademanes minhotos, com o seu tagarelar exuberante, com o seu praguedo nortenho tão natural.

Sentia-se que a nova safreira vivia a sua deslocação para a Gafanha como se fosse para uma festa.

Festa que, pelo que lhes tinha sido contado pelas mais batidas, sabiam ser de não horários, de muito suor, de muito esforço, mas também de agradáveis sestas quando o tempo o permitia, tudo à mistura com os seus descantes minhotos que ritmavam tanto o trabalho como o descanso.

No dia da chegada do barco, tudo aparecia vestido como se fosse para romaria.

E as fafeiras misturavam-se com as famílias da tripulação, quase deixando transparecer a mesma ânsia de quem aguarda por longos meses o reencontro de entes queridos.

O "spring" era lançado para terra e o ti Vareta mais o Zé Catarino já sabiam que fazer. Nó hábil e rápido no moitão e o barco, lentamente, aproximava-se do trapicho.

Ao longo do cais, que o guarda-fiscal não deixava que se aproximassem, as fafeiras não perdiam pitada. Especialmente as "caloiras".

A encarregada, a Ti Maria Rita, essa já não era, ao fim de tantos anos de experiência, para essas andanças. Aguardava no seu tugúrio, a que pomposamente chamava de escritório, que o contra-mestre lá fosse combinar o início da descarga.

Quantas mulheres para o porão, quantas para o convés e ao trapicho, quantas aos carros, quantas para as pilhas, quem ficava à balança, enfim: o princípio do rodopio comandado pelo bacalhau, rei e senhor.

Não era trabalho fácil este, o da descarga.

Mas a verdade é que estas mulheres do coração do Minho revelavam um espírito de corpo, de inter-ajuda, verdadeiramente excepcional.

Um dia, logo nos princípios de responsável, verificou-se que o ritmo de descarga tinha abrandado.

E o contra-mestre, velho amigo, aconselhou-me que fosse ao porão, pois era lá que estava a causa.

Lá desci de gatas, que a altura até ao convés era pouca, e lá andavam elas a atirar o peixe para a dala estendida.

Vi que não dava para mais. Mas mesmo assim lá gritei: "Amiguinhas! Só vamos sair daqui quando estiverem pesados "tantos" quintais!"

E lá do escuro, bem do extremo do porão, uma voz que nunca identifiquei saiu-se com esta que nunca mais esqueci:

"Ai o estupor do homem! Se nos chama a nós de amigas, que há-de chamar à mulher?".

Para não me verem rir, corri a subir para o convés, deixando-as no seu ritmo marcado pelas suas cantigas.

Não sei como, mas a verdade é que à hora prevista, da balança vieram-me dizer que os quintais previstos para o dia de descarga tinham sido ultrapassados.

Ainda havia peixe no porão e já se começava a lavar nas pias.

Os tempos eram de dinheiro magro e havia que começar a secar, para se começar a realizar fundos.

E apesar de o trabalho, por vezes, se iniciar às seis da manhã, a verdade é que, se o tempo o justificava, se fazia serão, a lavar nos tanques, a separar e a enfardar, por noite dentro.

O espírito da "fafeira" era esse mesmo.

O que interessava era juntar o melhor pé-de-meia possível no decurso da safra para o enxoval que todas sonhavam rico de promessas de casório futuro.

Safra que não rendesse mais um cordão de ouro não era safra nem era nada.

As horas extra eram sempre desejadas e o castigo do corpo – diziam elas – afastava vícios.

Para moças que sempre tinham vivido o campo, era de espantar como, num ápice, se adaptavam ao novo meio, às novas gentes, às novas práticas do seu trabalho.

As expressões mais cerradas do seu novo oficio eram aprendidas e usadas como de nascença.

O "tratamento" do bacalhau "seleco", que aparecia sempre que os cascos de madeira dos barcos deixavam entrar água no porão e o seu esgoto se não fazia convenientemente, para elas era canja. O lavar e salgar de novo afastava os fumos de cheiros doentios e o bacalhau ressuscitava nas mesas, como se nada se tivesse passado.

Fazer a cosmética ao "rouge" e ao "empoado" para elas era brinquedo. Pincel na mão, peixe na mesa, caldo de metabissulfito e lá se ia o vermelho ao fim de algumas horas de sol.

Escova bem esfregada na carne do bacalhau e lá desaparecia o acastanhado do pó que atirava para sortido de segunda o peixe mais especial, o grado.

Fadas de milagres, estas fafeiras.

Sentia-se que o bacalhau era a sua razão de ser e que a seca era a sua casa. O convívio que se estabelecia no trabalho era encarado como sucedâneo da família que se tinha deixado lá para o norte.

Durante todo o santo dia cantavam. Normalmente, era quando se lavava peixe que as cantigas brilhavam mais.

À solista, que sempre havia, respondia o coro. Canções de trabalho do Minho, próprias do amanho dos campos, mas que a inventiva adaptava às tarefas da seca.

E à merenda, quando se sabia que o peixe só seria recolhido lá mais para tarde, às cantigas juntava-se o bailarico dumas com outras.

Era certo e sabido. Ao fim de pouco tempo, as que não tinham deixado namoro na terra arranjavam derriço gafanhão.

E era vê-los, aos moços, ao portão, à hora do despegar, à espera da fafeira apetecida, namorada de outras falas, de outros lados.

Quando se desenhava o fim da safra, todo o mundo começava a sonhar com a festa: era o jantar da seca, para algumas com a presença do namorado e o bailarico que entrava pela noite dentro.

E depois era a despedida até que houvesse notícia de novo carregamento a chegar ao cais.

Mas quantas daquelas moças não ficaram por cá, enriquecendo, com os seus costumes, a sua cozinha, os seus cantares, as suas danças, os hábitos das nossas Gafanhas?

A conclusões bem seguras nesta matéria já terá chegado, de há muito, o Grupo Etnográfico da Gafanha da Nazaré no seu cuidadoso levantamento das riquezas culturais da sua terra.

E por certo que só esta interpenetração de danças e cantares do Minho – mais precisamente da região de Fafe – daria para um trabalho de grande fôlego etnográfico.

Haja quem o queira fazer.

A todos nos enriqueceria.

Fonte: Grupo Etnográfico da Gafanha da Nazaré

page21fafeiras.jpg

QUEM ERAM AS “FAFEIRAS” DA GAFANHA DA NAZARÉ – MOÇAS DE FAFE QUE ÍAM TRABALHAR NA SECA DO BACALHAU?

Tal como o nome indica, as “fafeiras” eram moças do concelho de Fafe que migravam sazonalmente para a Gafanha da Nazaré, a fim de trabalharem na seca do bacalhau. A sua presença naquela freguesia do concelho de Ílhavo deixou marcas indeléveis na cultura local, mormente no seu folclore. A esse respeito e acerca das suas lides e modos de vida, transcrevemos a crónica de Gaspar Albino que é divulgada pelo Grupo Etnográfico da Gafanha da Nazaré.

page23fafeiras.jpg

FAFEIRAS – POR GASPAR ALBINO

Era às segundas-feiras. Logo pela manhã, dirigia-me aos correios de Aveiro em busca do sempre desejado telegrama com notícias de bordo do navio, nos mares da Terra Nova.

E era com sofreguidão que regressava ao Largo do Rossio, ao escritório da empresa, para abrir o cofre em busca da cifra que me permitia descodificar o seu conteúdo. Quase todo ele incompreensível para quem não tivesse a chave.

Ficava-se a saber do tempo que tinha feito, dos pesqueiros que o barco tinha frequentado, da saúde e da doença da tripulação, das avarias e, finalmente, a quantidade de bacalhau capturado na semana com aproximada definição dos tamanhos do peixe embarcado no porão.

Os momentos que se seguiam eram comandados pela informação que chegara: alegria pela fartura; tristeza, pela míngua. Às vezes, euforia pelas somas de bons parciais; outras, a tristeza e a dúvida que as brisas (ventos fortes, em linguagem marinheira) alimentavam de maus augúrios quanto ao resultado final da safra.

Tudo isto, entretanto, era guardado com um certo secretismo, conferindo ao ritual das segundas-feiras uma atmosfera singular que, hoje, decorridos que são tantos anos, ainda recordo com emoção.

A nova safra da pesca iniciava-se sempre ainda com o bacalhau da campanha anterior em mãos.

E era certo e sabido que ninguém me largava, ao sábado, quando me deslocava à seca na Gafanha para fazer o pagamento ao pessoal.

Começava pela ti Maria Rita (como a recordo no seu corpanzil de mulherona nos seus quarenta e tais anos que não passavam pela cara de menina que, no fundo, sempre foi) com o seu "então, que tal vamos de escama?"

E, depois, era o senhor Manuel Vareta, o carpinteiro, que, mal me pressentia, lá saltava do sobrado até ao pequeno escritório, onde eu me ia desfazendo dos envelopes das semanadas das mulheres. Os nossos olhares já continham, também eles, um código. As mais das vezes, nem trocávamos palavra sobre a pesca, mas o sorriso, ou o encolher de ombros com que ele ficava para o fim do pagamento ao pessoal, era a garantia da mensagem transmitida e bem compreendida.

Legenda da foto: Perspectiva aérea das secas da Cale da Vila com os seus estendais de peixe. Em primeiro plano a "Seca do Milena", hoje à espera de ser convertida em pólo do Museu Marítimo de Ílhavo.

O Zé Catarino, o ajudante de carpinteiro, nesta questão das capturas, vinha sempre também ajudar à missa e conforme a reacção do chefe, assim era o bulir da enchó que nunca largava.

A Fátima, a filha do guarda, o Ti Augusto, era mais afoita nos seus assumidos dezoito anos que o título de segunda encarregada não conseguia disfarçar.

E lá escorregava eu com a informação que mais tranquilizasse as fafeiras que, respondendo ao seu número na folha de férias, lá se chegavam ao postigo para receberem o soldo que guardavam, de pronto, no seio, por botão entreaberto da blusa.

É que da forma como estivesse a correr a viagem muito dependia o regresso às suas terras, lá para o Minho, para Fafe e seus arredores, onde as famílias as aguardavam para as vindimas e os namorados para aprazar casamento.

Ainda sou do tempo em que o sol mandava no trabalho das secas.

Desarreigadas da sua terra, das suas famílias, as fafeiras constituíam o grosso do pessoal que nelas trabalhava.

Na seca de Lavadores, na Barra, até dispunham dum dormitório. Mas a maior parte das moças que trabalhava nas secas da Cale da Vila vivia em grupos, em acomodações disseminadas pelo povoado, paredes meias com as famílias locais e com estas muito intimamente ligadas.

A forma como se instalavam e viviam na Gafanha, longe da sua terra, fazia com que se estabelecesse uma relação muito forte com a encarregada da sua seca.

É que, pelas décadas de 50 e de 60, também neste sector, havia uma grande fidelidade à empresa de pesca em que cada grupo trabalhava. Um grupo de jovens mulheres, quase todas solteiras e casadoiras, que se comportava de forma coesa, como se de uma irmandade se tratasse, e aceitando, de forma natural, a liderança de uma colega mais experimentada nestas andanças do trabalho nas secas.

Era com esta chefe pacificamente aceite que a encarregada tudo tratava.

Eu conto.

Mal se adivinhava o final da viagem, com o carregamento de peixe a propiciar o regresso do barco, a encarregada do secadouro, trabalhadora permanente, começava a preparar tudo para a nova safra. E lá telefonava para a chefe do grupo, lá para a sua aldeia fafense, para que o grupo se prevenisse. Os carpinteiros já andavam às voltas com as "lambretas" e os carros de mão que tinham de estar reconstruídos, afinados e lubrificados. Mas para cortar a relva, reparar as mesas de secagem, lavar e pintar com cal e metabissulfito de sódio os armazéns de peixe verde, de peixe em mãos, e de peixe seco, já era necessária a primeira leva de mulheres.

E logo que chegavam se ficava a saber quem tinha casado e, por isso, permanecia na sua terra. As neófitas já tinham metido a sua "cunha" para preencher as vagas no grupo.

Era vê-las com os seus ademanes minhotos, com o seu tagarelar exuberante, com o seu praguedo nortenho tão natural.

Sentia-se que a nova safreira vivia a sua deslocação para a Gafanha como se fosse para uma festa.

Festa que, pelo que lhes tinha sido contado pelas mais batidas, sabiam ser de não horários, de muito suor, de muito esforço, mas também de agradáveis sestas quando o tempo o permitia, tudo à mistura com os seus descantes minhotos que ritmavam tanto o trabalho como o descanso.

No dia da chegada do barco, tudo aparecia vestido como se fosse para romaria.

E as fafeiras misturavam-se com as famílias da tripulação, quase deixando transparecer a mesma ânsia de quem aguarda por longos meses o reencontro de entes queridos.

O "spring" era lançado para terra e o ti Vareta mais o Zé Catarino já sabiam que fazer. Nó hábil e rápido no moitão e o barco, lentamente, aproximava-se do trapicho.

Ao longo do cais, que o guarda-fiscal não deixava que se aproximassem, as fafeiras não perdiam pitada. Especialmente as "caloiras".

A encarregada, a Ti Maria Rita, essa já não era, ao fim de tantos anos de experiência, para essas andanças. Aguardava no seu tugúrio, a que pomposamente chamava de escritório, que o contra-mestre lá fosse combinar o início da descarga.

Quantas mulheres para o porão, quantas para o convés e ao trapicho, quantas aos carros, quantas para as pilhas, quem ficava à balança, enfim: o princípio do rodopio comandado pelo bacalhau, rei e senhor.

Não era trabalho fácil este, o da descarga.

Mas a verdade é que estas mulheres do coração do Minho revelavam um espírito de corpo, de inter-ajuda, verdadeiramente excepcional.

Um dia, logo nos princípios de responsável, verificou-se que o ritmo de descarga tinha abrandado.

E o contra-mestre, velho amigo, aconselhou-me que fosse ao porão, pois era lá que estava a causa.

Lá desci de gatas, que a altura até ao convés era pouca, e lá andavam elas a atirar o peixe para a dala estendida.

Vi que não dava para mais. Mas mesmo assim lá gritei: "Amiguinhas! Só vamos sair daqui quando estiverem pesados "tantos" quintais!"

E lá do escuro, bem do extremo do porão, uma voz que nunca identifiquei saiu-se com esta que nunca mais esqueci:

"Ai o estupor do homem! Se nos chama a nós de amigas, que há-de chamar à mulher?".

Para não me verem rir, corri a subir para o convés, deixando-as no seu ritmo marcado pelas suas cantigas.

Não sei como, mas a verdade é que à hora prevista, da balança vieram-me dizer que os quintais previstos para o dia de descarga tinham sido ultrapassados.

Ainda havia peixe no porão e já se começava a lavar nas pias.

Os tempos eram de dinheiro magro e havia que começar a secar, para se começar a realizar fundos.

E apesar de o trabalho, por vezes, se iniciar às seis da manhã, a verdade é que, se o tempo o justificava, se fazia serão, a lavar nos tanques, a separar e a enfardar, por noite dentro.

O espírito da "fafeira" era esse mesmo.

O que interessava era juntar o melhor pé-de-meia possível no decurso da safra para o enxoval que todas sonhavam rico de promessas de casório futuro.

Safra que não rendesse mais um cordão de ouro não era safra nem era nada.

As horas extra eram sempre desejadas e o castigo do corpo – diziam elas – afastava vícios.

Para moças que sempre tinham vivido o campo, era de espantar como, num ápice, se adaptavam ao novo meio, às novas gentes, às novas práticas do seu trabalho.

As expressões mais cerradas do seu novo oficio eram aprendidas e usadas como de nascença.

O "tratamento" do bacalhau "seleco", que aparecia sempre que os cascos de madeira dos barcos deixavam entrar água no porão e o seu esgoto se não fazia convenientemente, para elas era canja. O lavar e salgar de novo afastava os fumos de cheiros doentios e o bacalhau ressuscitava nas mesas, como se nada se tivesse passado.

Fazer a cosmética ao "rouge" e ao "empoado" para elas era brinquedo. Pincel na mão, peixe na mesa, caldo de metabissulfito e lá se ia o vermelho ao fim de algumas horas de sol.

Escova bem esfregada na carne do bacalhau e lá desaparecia o acastanhado do pó que atirava para sortido de segunda o peixe mais especial, o grado.

Fadas de milagres, estas fafeiras.

Sentia-se que o bacalhau era a sua razão de ser e que a seca era a sua casa. O convívio que se estabelecia no trabalho era encarado como sucedâneo da família que se tinha deixado lá para o norte.

Durante todo o santo dia cantavam. Normalmente, era quando se lavava peixe que as cantigas brilhavam mais.

À solista, que sempre havia, respondia o coro. Canções de trabalho do Minho, próprias do amanho dos campos, mas que a inventiva adaptava às tarefas da seca.

E à merenda, quando se sabia que o peixe só seria recolhido lá mais para tarde, às cantigas juntava-se o bailarico dumas com outras.

Era certo e sabido. Ao fim de pouco tempo, as que não tinham deixado namoro na terra arranjavam derriço gafanhão.

E era vê-los, aos moços, ao portão, à hora do despegar, à espera da fafeira apetecida, namorada de outras falas, de outros lados.

Quando se desenhava o fim da safra, todo o mundo começava a sonhar com a festa: era o jantar da seca, para algumas com a presença do namorado e o bailarico que entrava pela noite dentro.

E depois era a despedida até que houvesse notícia de novo carregamento a chegar ao cais.

Mas quantas daquelas moças não ficaram por cá, enriquecendo, com os seus costumes, a sua cozinha, os seus cantares, as suas danças, os hábitos das nossas Gafanhas?

A conclusões bem seguras nesta matéria já terá chegado, de há muito, o Grupo Etnográfico da Gafanha da Nazaré no seu cuidadoso levantamento das riquezas culturais da sua terra.

E por certo que só esta interpenetração de danças e cantares do Minho – mais precisamente da região de Fafe – daria para um trabalho de grande fôlego etnográfico.

Haja quem o queira fazer.

A todos nos enriqueceria.

Fonte: Grupo Etnográfico da Gafanha da Nazaré

page21fafeiras.jpg

QUEM SÃO OS NOVOS CONSELHEIROS TÉCNICOS DA FEDERAÇÃO DO FOLCLORE PORTUGUÊS NA REGIÃO DO MINHO?

A Federação do Folclore Português nomeou anteontem em Ílhavo os conselheiros técnicos de todas as regiões do país.

332884900_733381868276519_6043067155340220865_n (1).jpg

Foram a Ílhavo para serem indigitados como Conselheiros Técnicos, os do Alto Minho: Elisa Alves (que fica como Coordenadora do ctr); João Nuno Pinho; Joaquim Manuel Pinto; Rafaela Pisco; Carla Araújo; Ruben Manuel Coelho; e com o estatuto de Conselheiro Técnico Observador o Ivo Rua.

Do Conselho Técnico do Baixo Minho: Inácio Ferreira que ficará como Coordenador do CTR (os restantes Conselheiros, como não estiveram em Ílhavo serão indigitados mais tarde).

Do Conselho Técnico do Baixo Minho Interior: Fernando Barbosa que fica como Coordenador do CTR; Raul Sousa; José Filipe Vasconcelos; e com o estatuto de Conselheiros Técnicos Observadores o José Carlos Teixeira e a Telma da Silva.

Outros nomes aprovados pela direção da Federação do Folclore Português serão indigitados posteriormente e assinado o respetivo Auto de Indigitação dos Conselheiros Técnicos Regionais para o mandato de 2023 a 2025.

Foto: Abel Cunha

DESFILE NACIONAL DO TRAJE POPULAR REALIZA-SE ESTE ANO EM ÍLHAVO

O Desfile Nacional do Traje Popular vai este ano realizar-se na cidade de Ílhavo no próximo mês de Setembro.

O Presidente da Câmara Municipal de Ílhavo, Dr. João Campolargo, comunicou no passado sábado ao Presidente da Federação do Folclore Português, Professor Doutor Daniel Café, a aceitação de se fazer o tradicional desfile na sua cidade. A comunicação ocorreu por ocasião do 39º Aniversário do Rancho Regional da Casa do Povo de Ílhavo.

GFCP DesfileTraje Moncao 2022 (05).jpg

Desfile do Traje Popular realizado em Monção no ano passado. Na imagem, o Grupo de Folclore Casa de Portugal sediado em Andorra. Foto: Abel Cunha