OS ESTALEIROS NAVAIS DE VIANA DO CASTELO NAS MEMÓRIAS (AINDA NÃO PUBLICADAS) DO ALMIRANTE HENRIQUE TENREIRO
Por gentileza do Dr. Henrique Marçal, sobrinho-neto do Almirante Henrique Tenreiro, o BLOGUE DO MINHO publica um extrato das Memórias do Almirante Henrique dos Santos Tenreiro, escritas em 1980, após a sua saída de Portugal em novembro de 1975, e nunca publicadas, nas quais faz referências a um episódio da aquisição da posição inglesa inicial nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo feita por um português e as surpreendentes relações entre os vários intervenientes no processo.
ENVC – Estaleiros Navais de Viana Castelo
“Um dia apareceu-me no meu gabinete, Jacques de Lacerda, aflito e dizendo-me que os donos da Parry & Son queriam vender o estaleiro e que ele ficaria com a vida completamente arruinada, pois perderia o lugar de administrador e a obra que vinha realizando no respetivo estaleiro. A única solução seria ele comprar os estaleiros, pois uma cláusula da escritura dava-lhe a preferência pelo preço por que fossem avaliados.
Os ingleses tinham avaliado os estaleiros por um preço baixo, apesar do ser muito dinheiro naquela época: 25 mil contos. Ele não tinha dinheiro para isso. O advogado dos ingleses era uma pessoa muito dura, Dr. Bustorff Silva, um dos melhores advogados de Lisboa. Ele era meu amigo, pois meu pai tinha-lhe ensinado as primeiras letras. Lacerda instou, pediu que o ajudasse, pois era uma obra que ele iria fazer para o bem do País e os estaleiros passariam para a mão de um português e que o Governo tinha a obrigação de o auxiliar nessa iniciativa, pois o surto de desenvolvimento da marinha mercante e da pesca justificava plenamente um empréstimo a longo prazo para ele pagar aos ingleses.
Pensei, será mais uma acha para a fogueira dos invejosos, amigos ou inimigos, que só se norteiam pelos interesses materiais e que nunca acreditarão na minha isenção em tal operação.
Assim mesmo, decidi-me a atender e estabelecemos a forma de agir: "primeiro, você vai expor todo esse plano ao Ministro da Marinha, Almirante Américo Tomaz para que ele se interesse e o exponha ao Dr. Salazar, ao Ministro das Finanças e à Caixa Geral de Depósitos para que esta lhe faça o respetivo empréstimo. Eu falarei ao Ministro da Marinha das suas razões e vou falar com o Dr. Bustorff Silva para que ele seja razoável e compreensível na res-petiva transação. Passaram-se alguns meses e o Ministro da Marinha que tinha simpatia e admiração pelo Lacerda e achava a causa justa, tinha-se empenhado a fundo no assunto, mas nada conseguiu da Caixa Geral do Depósitos quanto ao assunto do financiamento. Fiquei desolado; nova conversa com o Lacerda que me procurava quase todos os dias. Pedi-lhe a cópia do processo que ele tinha enviado à Caixa, para eu pessoalmente tratar do assunto junto ao Banco Ultramarino onde, neste momento, o meu querido amigo e Embaixador Teotónio Pereira era administrador. Falei, conversei muito com ele e trouxe reais esperanças. Demoraram meses as informações, pedido de documentos e dar a resposta. Os ingleses apertaram com o Lacerda e deram-lhe um prazo para ele resolver. O Pedro Teotónio Pereira desolado, comunica-me que o Banco não pode de fazer o empréstimo. O Lacerda ficou louco e eu desolado e triste por ver que nem as instâncias oficiais, nem a Banca particular se interessavam por problemas vitais do País.
Levei dois dias a pensar corno poderia resolver o assunto e resolvi ir falar com o Dr, Bustorff Silva e expor-lhe um plano. Bustorff, era um grande salazarista, tinha-me como pedra do xadrez político e votava-me muita consideração. Ele adorava meu pai. Depois de larga discussão fiz-lhe uma proposta. Lacerda compraria os estaleiros em prestações de 6 anos, daria uma prestação de 5 mil contos no ato da escritura e só faria a escritura definitiva no ato de pagamento da última prestação. Muita discussão e ele concordou desde que eu moralmente ficasse responsável. Aceitei. Lacerda chorou de alegria no meu gabinete e ao dizer-lho para marcar a data da escritura, declarou-me quo não tinha os cinco mil contos para o sinal. Fiquei transtornado: tanto trabalho, tantos compromissos, que até me podiam afetar moralmente, e via ir tudo por água abaixo. Não desanimei.
Mandei chamar o chefe dos serviços do Grémio das Pescas e perguntei quem eram os armadores que estavam autorizados a fazer construções. Entre estes armadores que estavam autorizados, estavam, a firma Veloso e Cia. cujo proprietário era um homem de carácter, antigo armador o muito meu amigo. A sua empresa era no Norte do País e me informaram quo ele estava em relações com os Estaleiros de Viana do Castelo para construir o seu navio. Jacques de Lacerda tinha sido o técnico e negociador para salvar os Estaleiros de Viana e a Parry & Son já era sócia maioritária. Foi-me fácil idealizar que Veloso podia ser a chave para resolver a compra do Parry & Son. Assim, pedi que viesse ver-me e perguntei-lhe se ele estava pronto para construir o seu navio e fechar o contrato com os Estaleiros de Viana do Castelo. Ele me afirmou que sim. Era um homem rico e tinha os fundos indispensáveis para adiantar aos Estaleiros de Viana uma verba avultada para a construção do navio. Coloquei o Veloso em contato com o Jacques do Lacerda e, numa brave reunião entre os três, ficou arrumado todo o problema. Parecia um milagre, pois resolveu-se ali o plano financeiro para a compra do Parry & Son. E assim, Jacques de Lacerda ficou proprietário do Parry & Son e presidente maioritário dos Estaleiros de Viana do Castelo. Ele chorou de alegria no meu gabinete; era um problema dificílimo de resolver e durante um ano se fizeram os maiores esforços oficiais e particulares para solucionar um grande problema para a indústria nacional, vital para as pescas e que ia dar trabalho a muitos operários portugueses.
Muitos navios se construíram em Viana do Castelo inclusive o Navio Hospital Gil Eanes. E várias vezes durante o ano, o Ministro da Marinha e várias autoridades se dirigiam a Viana do Castelo para assistir a essas cerimónias que mobilizavam a população toda da terra, em sinal de alegria pelo desenvolvimento da indústria local. A criação doa estaleiros marcou na minha vida uma das maiores obras, industrial e social, que ainda hoje perdura.
Os estaleiros continuaram magnificamente a operar tanto o Parry & Son, como Viana do Castelo e Jacques de Lacerda trabalhava denodadamente entre Viana e Lisboa para os administrar. Portou-se como um grande e grato amigo. Nada quis dele e ele se preocupava com a minha saúde, como um verdadeiro irmão e lembra-me a sua aflição, que chegou às lagrimas, quando doente tive que ir a Nova York para fazer uma operação.
A sua morte prematura abalou-me consideravelmente. Morreu com 45 anos em plena atividade não podendo colher os frutos da sua obra. Ficou a administrar os estaleiros um sobrinho, Luiz da Lacerda, o filho, que ainda era um rapaz novo e a viúva, mas a administração que faziam e os gastos com suas vidas particulares, trouxeram várias dificuldades aos estaleiros.
Tive que continuar a proporcionar assistência técnica e financeira para que pudessem aguentar e construir.
Foi para mim uma deceção quando fui informado, não por eles, que os estaleiros tinham sido vendidos à Companhia União Fabril por um valor excecional, comparado com a compra que se tinha feito antes e que eles, sobrinho e filho tinham continuado administradores com bons vencimentos.”
- Henrique dos Santos Tenreiro – Memórias (Rio de Janeiro, 1980). (Não publicado).
Gentilmente cedido pelo Dr. Henrique Marçal, sobrinho-neto do Almirante Henrique Tenreiro.
VIANA DO CASTELO: ALMIRANTE HENRIQUE TENREIRO VISITOU OS ESTALEIROS NAVAIS EM 1948
Almirante Henrique Tenreiro visitou os Estaleiros Navais de Viana do Castelo em 7 de Março de 1948. Fonte: Biblioteca Central de Marinha / Arquivo Histórico