O FOLCLORE E AS MARCHAS POPULARES
- O Estado Novo e as tradições são-joaninas
A celebração do Solstício de Verão que ocorre no dia 21 de Junho marca as tradições são-joaninas – ou juninas – que levam o povo a festejar os chamados “santos populares”. Nas regiões mais a norte, os festejos são predominantemente dedicados a São João enquanto as comunidades piscatórias, por afinidade de ofício, celebram a São Pedro. Em Lisboa, terra onde nasceu Fernando de Bulhões que haveria de ficar consagrado como Santo António, a devoção popular adquiriu tal dimensão que S. Vicente, padroeiro da cidade, acabou por ser remetido ao esquecimento.
As marchas populares de Lisboa, tal como atualmente as conhecemos, datam a sua origem de 1932, altura em que desfilaram na avenida da Liberdade os primeiros “ranchos” como então se diziam. Porém, pelo menos desde o século XVIII que as mesmas se realizavam, inserindo-se nas tradições são-joaninas que têm lugar um pouco por todo o país, com as suas características fogueiras e festões, manjericos e alho-porro. À semelhança de outras festividades que ocorrem noutras épocas do ano, a escolha do dia 24 para celebrar o S. João é devido ao calendário juliano.
As marchas populares foram naturalmente influenciadas pelas quadrilhas que geralmente tinham lugar por ocasião dos festejos a Santo António e que se formavam de pequenos grupos constituídos por cerca de quarenta participantes que percorriam as ruas da cidade e se detinham em frente aos palácios aristocráticos ou de outras famílias abastadas onde, ao som do apito do marcador, se exibiam de forma ruidosa e sem grandes preocupações em relação à coreografia. Este ritual que também nos remete para a “marche aux flambeaux” ou seja, a marcha dos archotes que ocorria em França, foi levado pelos portugueses para o Brasil onde, sobretudo nas regiões do nordeste, se popularizou e veio a misturar com as danças brasileiras já existentes à época
São precisamente as quadrilhas que, de um modo geral, com as modificações que lhe foram introduzidas, acabariam por dar a forma às marchas populares e aos próprios corsos carnavalescos que antecedem a chegada da Primavera. Caracterizada originalmente como uma dança a quatro pares, a quadrilha constituiu uma adaptação da countrydance inglesa, impropriamente traduzida para o francês como “contredance” e, finalmente, vertida para a Língua portuguesa como “contradança”.
No entanto, tais celebrações possuem origens bem mais remotas e perdem-se nos confins dos tempos. Desde sempre, o Homem procurou celebrar através do rito a ação criadora dos deuses, constituindo um ritual mágico destinado a perpetuar o gesto primordial da sua criação. Desse modo, ao celebrar a chegada do Verão por altura do solstício, o Homem assegurava que o ciclo da Natureza jamais seria interrompido, dando continuidade à vida num perpétuo ciclo de constante renascimento. E, à semelhança do que sucedia com a generalidade das celebrações pagãs, esta constitui a essência das festividades solsticiais que entretanto foram cristianizadas e, nesse contexto, dedicadas a São João Baptista.
Conta uma velha lenda cristã que, por comum acordo das primas Maria e Isabel, esta terá acendido uma enorme fogueira sobre um monte para avisar Maria do nascimento de São João Baptista e, desse modo, obter a sua ajuda por ocasião do parto. E, assim, pode a tradicional fogueira que os povos pagãos da Europa acendiam nomeadamente por ocasião do solstício de Verão ser assimilada pela nova religião então emergente. Na realidade, era também habitual acender fogueiras por altura da Páscoa e do Natal, tendo dado origem ao madeiro que se queima no largo da aldeia e ao círio pascal, bem assim às numerosas representações feitas nomeadamente na doçaria tradicional.
É ainda nas fogueiras de São João que têm origem as exuberantes exibições de fogo-de-artifício e os balões iluminados com que se enfeitam as ruas dos bairros e se penduram nos arcos festivos que são levados pelos marchantes que desfilam na noite de Santo António. Era ainda usual, na noite de São João, atarem-se aos balões, antes de os elevarem nos céus, pequenos papéis contendo desejos e pedidos, à semelhança das quadras feitas a Santo António que se colocam sobre os vasos de manjericos, tradição que remete para rituais ancestrais ligados à fertilidade e à vida. Estes festejos celebram-se também em diversos países europeus e, por influência da cultura portuguesa, no nordeste brasileiro onde tem lugar o casamento fictício no baile da quadrilha. Entre nós, este costume veio em 1958 a dar origem aos chamados “casamentos de Santo António”.
De um modo geral, pelo simbolismo que as caracterizam e a coreografia a que estão associadas, as festas solsticiais estão ligadas às chamadas “danças de roda” representadas desde a mais remota antiguidade. Perfilando-se geralmente em torno da fogueira ou do mastro de São João, a mocidade dá as mãos, canta e dança em seu redor, num ritual que denuncia o seu misticismo primordial. Esta constitui, aliás, uma das tradições mais arreigadas entre os povos germânicos e, sobretudo, na Suécia onde chega a ser considerada a sua maior festa nacional. O hábito de inicialmente nele se suspenderem coroas ou ramos de flores veio a dar origem a outros divertimentos como o pau ensebado no cimo do qual é colocado uma folha de bacalhau para premiar aquele que o consiga alcançar.
À semelhança do que se verificou com outras manifestações da nossa cultura tradicional, também os festejos são-joaninos da cidade de Lisboa registaram a intervenção dos teóricos do Estado Novo e vieram a adquirir formas estilizadas, mais de acordo com o género da revista à portuguesa que já então animava os teatros do Parque Mayer. Foi então que, sob a batuta de Leitão de Barros e Norberto de Araújo, passou em Lisboa a realizar-se o concurso das denominadas “marchas populares”. Envergando o traje à vianesa, o bairro de Campo de Ourique foi o vencedor da primeira edição, facto que o levou a repetir o tema em 1997.
Organizados pelas coletividades de cultura e recreio, as “marchas populares” passaram a escolher preferencialmente temas relacionados com os aspetos pitorescos e a História dos seus bairros, dando ênfase a uma vivência predominantemente urbana e associada ao ambiente boémio e fadista. Nalguns casos, porém, era dado um particular realce ao elemento etnográfico como sucedia com as tradições saloias dos bairros de Benfica e Olivais ou então, ao carácter peculiar da colónia ovarina que habita o pitoresco bairro da Madragoa. Em relação à coreografia e à indumentária, caracterizam-se invariavelmente pela fantasia e a teatralidade, não revelando em qualquer dos casos quaisquer preocupações de natureza folclórica e etnográfica, pelo menos na sua perspetiva museológica ou seja, de preservação da sua autenticidade.
Possuindo as suas raízes mais próximas nas tradições joaninas, as “marchas populares” depressa obtiveram a adesão popular. Em 1936, quatro anos após o primeiro desfile organizado em Lisboa, saíram à rua na cidade de Setúbal para, com o decorrer dos anos, iniciativas semelhantes se estenderem a todo o país
Em Lisboa, a “marcha popular” é constituída por vinte e quatro pares de marchantes a que se juntam quatro aguadeiros e um “cavalinho” composto por oito elementos, tocando um clarinete, um saxofone alto, dois trompetes, um trombone, um bombardino, um contrabaixo e uma caixa. Para além daqueles, podem ainda ser incorporados o porta-estandarte, duas crianças como mascotes, um par de padrinhos e dois ensaiadores. Todas as marchas devem incluir o festão e o balão ou o manjerico e exibir o “Trono de Santo António” ou o “Arraial”.
Constituindo o folclore o saber do povo, é este que cria a sua própria festa e constrói o saber à maneira do seu carácter, à sua feição e modo de entender o mundo que o rodeia, adaptando-o sempre a novas realidades. Embora influenciado através da intervenção feita em determinadas épocas históricas, a criação popular não cristaliza porquanto o povo ainda não constitui um objeto fossilizado – ela renasce sempre que reacende a fogueira de São João!
Carlos Gomes / http://www.folclore-online.com/