O “AUTO DE FLORIPES” OU O TEATRO POPULAR PORTUGUÊS PRÉ-VICENTINO
Um pouco por todo o país e ainda além-fronteiras, persistem nas tradições populares representações teatrais cujas origens remontam à Idade Média e versam a história lendária do imperador Carlos Magno e a temática das guerras entre cristãos e sarracenos, estes geralmente identificados como turcos em virtude da sua dominação se ter estendido a zona oriental do mar Mediterrâneo.
É célebre a representação do “Auto de Floripes” que ocorre no mês de Agosto, em Mujães, no concelho de Viana do Castelo. A ação decorre entre o adro da igreja paroquial de onde sai o cortejo até à Capela da Senhora das Neves, na confluência com as freguesias de Barroselas e Vila de Punhe. Ainda, no concelho de Viana do Castelo, na localidade de Portela Suzã esta representação toma a designação de “Auto de Santo António”.
Em S. João da Ribeira, no concelho de Ponte de Lima, a peça toma a designação de “Auto da Turquia” e tem lugar de Crasto, por ocasião da Festa do Senhor da Cruz da Pedra que se realiza no segundo domingo de Agosto. Aqui defrontam-se dois exércitos, ostentando as bandeiras onde se inscrevem as respetivas insígnias – a cruz da Cristandade e a Lua Minguante com a Estrela que identifica os muçulmanos – e integrando doze personagens cada, incluindo o rei, o porta-bandeira, o capitão e um espião. Os cristãos saem sempre vitoriosos e o auto termina com a rendição inevitável dos turcos e a sua conversão ao Cristianismo.
Com ligeiras alterações e diferentes designações, encontramos ainda a representação do “Auto da Floripes” em Palme, no concelho de Barcelos e “Baile dos Turcos”, em Penafiel. Em Argozelo, no concelho de Vimioso, é designado por “Auto da Floripes”ou ainda “Comédia dos doze pares de França”. Em Parada, no concelho de Bragança, chamam-lhe “Auto dos Sete Infantes de Lara”. Em Sobrado, no concelho de Valongo, designa-se por “Dança dos Bugios e Mourisqueiros” enquanto em Vale Formoso, na Covilhã, toma o nome “Descoberta da Moura”. Também é representada no concelho de A Canhiza, na Galiza, com o nome “Auto do Mouro e do Cristão”.
Em Pechão, no concelho de Olhão, o auto “Combate de Mouros e Portugueses” serviu de argumento a uma longa-metragem do realizador Miguel Mendes que, num misto de ficção e documentário, procura retratar o sofrimento da comunidade piscatória daquela vila algarvia.
À semelhança do que sucede com outros elementos da nossa cultura, também o “Auto das Floripes” foi pelos portugueses levado para paragens distantes onde sofreu naturalmente algumas mutações e é atualmente representado com o consequente carácter híbrido resultante do encontro de culturas. É o que sucede em São Tomé e Príncipe, com a representação de “A Tragédia do Marquês de Mântua e do Príncipe D. Carlos Magno”, também designado por “São Lourenço”por ocorrer no dia dedicado a este santo. Este auto toma no dialeto são-tomense a designação de “Tchiloli” cuja representação tem lugar na Ilha do Príncipe.
A autoria da peça, na forma como é interpretada, é atribuída ao poeta Balthasar Dias, originário da Ilha da Madeira, devendo ter sido introduzida em São Tomé e Príncipe nos finais do século XVI pelos portugueses que aí foram plantar a cana-de-açúcar. Os colonos, constituídos na sua maioria por madeirenses, começaram por integrar nas suas representações os escravos negros provenientes do Congo, Gabão e Camarões, os quais foram gradualmente introduzindo elementos da sua cultura original.
O “Tchiloli” tornou-se já numa das mais importantes atrações turísticas da Ilha do Príncipe com larga projeção internacional. Serviu de argumento ao filme “Floripes” de Afonso Alves e Teresa Perdigão e tema do livro “Floripes Negra, de Augusto Baptista, no qual o autor procura demonstrar as suas origens portuguesas.
A alusão ao imperador Carlos Magno relaciona-se naturalmente com o fato daquele imperador ter procedido à conversão forçada ao cristianismo dos povos que conquistou, objetivo que, curiosamente, jamais logrou alcançar na Península Ibérica. Outra particularidade consiste na escolha do dia dedicado a São Lourenço de Huesca para a sua representação, cuja festa litúrgica ocorre a 10 de Agosto.
Em várias localidades, a representação destes autos têm-se verificado de forma cada vez menos regular e, nalguns casos, correm inclusive o risco de passar ao esquecimento. As peças são quase sempre preservadas apenas pela tradição oral. E, apesar de poderem constituir um meio de atrair visitantes e promover as potencialidades culturais das regiões, a maioria dos municípios e entidades culturais não procede à sua divulgação. Trata-se de uma situação que pode e deve ser invertida mediante a intervenção dos grupos de teatro e outras associações que procuram preservar a cultura tradicional.
GOMES, Carlos. In http://www.folclore-online.com/index.html
Representação do Auto de Floripes em São Tomé e Príncipe.