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BLOGUE DO MINHO

Espaço de informação e divulgação da História, Arte, Cultura, Usos e Costumes das gentes do Minho e Galiza

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MÃE, JÁ NÃO VOU À GUERRA! – POR MANUEL TINOCO

PRÉ-PUBLICAÇÃO DO PREFÁCIO DE MANUEL TINOCO: "COURA: MEMÓRIAS DA GUERRA EM ÁFRICA", EDIÇÃO DE MÁRIO CLÁUDIO A LANÇAR NO DIA 25 DE ABRIL DE 2023

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Estava triste. Tinha tido pesadelos a noite toda. O Tomé estava no centro dos meus pesadelos. Se o apanhasse à frente matava-o. Não se pode falhar um golo daqueles de baliza aberta. E depois até recuei à primeira mão, onde o Carlos Pereira fez o golo do Magdeburgo, um autogolo na baliza norte de Alvalade, o Diniz falhara um penálti, o Chico tivera um ataque de fúria quando desperdiçou um golo de baliza escancarada e a malta suspirava pelo Yazalde que já tinha partido para o estágio da Argentina, à porta que estava o Mundial de 74.

Mas pronto, já estava preparado para aquela quinta-feira de ressaca da jornada europeia, haveria de ter aula de Físico-Química à primeira hora da manhã e depois talvez faltasse a Inglês para jogar uma bilharada no Jardim Cinema e tentar esquecer o raio do jogo da véspera.

Mas eis que tudo se altera.

Estava a comer a minha tigelada de leite com Ovomaltine, que o 55 passava dali a seis minutos na Duque de Loulé, quando entra na taberna o Drack do Diário de Notícias.

Então, hoje não trabalhas? E ele: andas a dormir, puto? Liga a telefonia e ouve o que se está passar. Era o 25 de Abril a dar em directo das ruas de Lisboa logo às oito da matina, o Joaquim Furtado, o Alfredo Alvela, o Orlando Dias Agudo, o Adelino Gomes.

Cuidado, filho, o melhor é não ires ao Liceu, pode ser perigoso. Mas eu descansava a minha Mãe: não te preocupes, se vir a coisa mal-parada venho logo para casa. E fui.

Apesar da chuva molha-tolos, jogámos à bola a manhã inteira, e eu percebi que já não ia para a guerra. Mãe, já não vou para a guerra! E demos um abraço, peguei nela ao colo e acho que lhe senti as lágrimas no meu ombro.

E pronto, 49 anos depois, seria isto que responderia ao Baptista-Bastos. O Pedro Nunes, o meu amigo Drack, a guerra em África e minha Mãe, eis os pontos obrigatórios do meu 25 de Abril.

Muitos dos meus conterrâneos não tiveram a minha sorte. Jovens que nunca haviam saído da sua terra, do seu canto, viram-se atirados para uma guerra que não mereciam.

Mal tinham acabado a quarta classe, dois tostões num bolso e uma sandes de nada no outro, lá foram defender a pátria, a mesma pátria que nunca lhes oferecera uma luz ao fundo do túnel da sua fraca vida.

Trabalhando dia e noite, tratados com desdém, sem tempo sequer para botar uma lágrima de saudade pela terra ou soltar um dorido lamento, vamos lá defender o que nos dizem ser nosso!

Arriscaram a vida, por lá deixaram saúde e por cá ficava quem lhes queria verdadeiramente bem. Uns não voltariam, outros não mais seriam os mesmos, triste sorte a dos filhos deste deus sem dó nem piedade; este que não era o deus em que criam.

Passados tantos anos, a presença dos courenses na guerra em África é algo que ainda nos marca. Marca quem lá esteve e marca os seus filhos e a sua gente, condicionados ainda hoje pela década negra que amputou a esperança do povo courense num futuro que tardou tanto.

Permita-me o leitor: a autoestima nunca foi uma característica que nos compensasse das agruras por que temos passado, chutados para canto pelos senhores do Terreiro do Paço desde Oitocentos e por aí acima, minando-nos o amor-próprio, fazendo-nos crer que, afinal, essa coisa dos portugueses de segunda é muito mais do que um chavão sempre pronto a burilar qualquer prosa em defesa dos menos protegidos, e que é no conformismo da fé e dentro das paredes da igreja que se resolvem todas as injustiças da vida terrena. Por termos a autoestima amassada e a estilhaçar-se de tantas fissuras, julgávamos que os nossos zarpavam para serem capacho dos outros, chapeuzinho na mão e calças coçadas no cu, desdenhados pela outra gente. Mas não.

A nossa gente, os nossos jovens, os que foram mandados para África, como os que haviam sido enviados para a guerra de 14-18 e todos quantos, afinal, se viram empurrados e tiveram que zarpar rumo ao mundo em busca do que o país lhes negara, foram um exemplo de perseverança e capacidade de trabalho, gente ousada e mais forte que a força do destino malvado, a nossa gente, dizia, somou triunfo atrás de triunfo, vida nova à vida fraca.

Eu reclamo-lhes uma estátua, uma memória que torne imorredoura a sua história; a história da forte gente courense que soube transformar a fraca vida em vida que, afinal, teve futuro.

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