JANEIRAS E REIS NO NORTE DE PORTUGAL – CRÓNICA DE FÁBIO PINTO
A convite do diretor deste espaço, Sr. Carlos Gomes, a quem agradeço, irei deixar algumas palavras a todos quantos se predispõem a ler este razorado de questões e visões sobre algo que muito me tem vindo a preocupar.
De forma indiscutível, no norte de Portugal, a tradição dos Cânticos ao Menino teve uma abrangência geográfica e social quase nula.
Nos trabalhos que me tenho predisposto realizar para o Orfeão da Feira, descobrimos recentemente que na Freguesia de Sanfins e Rio Meão, em termos religiosos, existiam novenas pelas 06h00 da manhã, na igreja, onde o terço se rezava e caso houvesse gente com alma para tal, alguns momentos eram cantados. Esta tradição ter-se-á perdido por volta da década de 50 do século passado.
Curioso o facto da hora e do ajuntamento da comunidade ser muito semelhante ao que ainda hoje se vive com enorme fervor na Madeira, com as Missas do Parto.
Avançando do religioso para o profano, algo me começa a doer e a causar incómodo. A realização de encontros de Janeiras e Reis dentro de templos religiosos.
É um tema sensível, dado muitos defenderem que com a retirada do Santíssimo do Sacrário, o templo se transforma numa sala de espetáculo, contudo, na minha forma de ver, esta questão está a provocar nos Grupos sérios problemas que passarei a enumerar para mais fácil análise:
Uma mentira contada muitas vezes, torna-se uma verdade ao fim de algum tempo. Estamos a transmitir para as gerações vindouras que os cânticos de Janeiras e Reis não eram cantados, de porta em porta por grupos, unicamente constituídos por homens, mas sim, nas igrejas e com belos arranjos musicais nada chegados à característica do povo d'antanho.
É impossível dar as boas festas e pedir a esmola do fumeiro ao patrão da casa, com ele pregado na cruz diante do altar.
À época de representação, a Igreja, era, ao contrário de hoje, extremamente rígida com a música litúrgica e os instrumentos que eram autorizados para o culto religioso. As formas da Viola Braguesa eram comparadas ao corpo desnudo de uma mulher, pelo que, a sua entrada nos templos religiosos era proibida. Hoje, vemos surgir, com ou sem Santíssimo no Sacrário a festada completa.
A invenção. Temos todos de ser muito honestos neste meio, mas infelizmente não o somos. De ano para ano, cada vez são mais os Grupos a organizar os seus encontros em templos religiosos e como as questões acima enumeradas começam a ser pensadas, à boa maneira portuguesa, dá-se um jeitinho no problema. Grande parte do reportório apresentado nestes encontros, ou é de autor, não sendo assim Folclore ou então são recolhas de Janeiras e Reis "suavizadas" para poderem estar presentes nestes encontros.
Recordo com saudade o Encontro de Janeiras e Reis do Rancho Regional Recordar é Viver de Paramos - Espinho, onde uma cozinha de lavrador com tudo que esta merece, e uma equipa de gente com uma queda incrível para o Teatro Etnográfico, faziam-nos transportar para o início do séc. XX e ali ouvíamos as belas ladaínhas das saudações acompanhadas pela viola, testos, pinhas e demais instrumentos que o povo improvisava, os cânticos já dentro de casa a vozes, e as despedidas.
Somos povo.
A dignidade do espetáculo não fica ferida se o espaço onde o realizarmos tiver condições, quer para o público, quer para os grupos não se verem obrigados a alterar aquilo que absorveram do povo que dizem representar.
Para remate, nada tenho contra os encontros nas igrejas, nas localidades e com grupos que tenham tido nas suas comunidades estas tradições.