GALIZA: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A SITUAÇÃO DA LÍNGUA DOS GALEGOS HOJE – CRÓNICA DE KATURO BARBOSA
A história da língua dos galegos tem sido, realmente, uma história clínica nas últimas décadas. Entramos no século XX com mais dum 90% de falantes nativos e uma saúde linguística que não tinham bascos e catalães. Esta pequena comunidade de hispano-parlantes estava constituída por pequenos grupos de falantes procedentes de diversas regiões espanholas e cujo número não se aproximava do 10% da população da Galiza, mormente vinculados à administração, ao exército ou às hierarquias eclesiásticas, todos eles dependentes do projeto político espanhol de signo castelhano. O grosso da população galega falava a sua língua histórica.
Foi durante esse século XX, que nasceu o galeguismo político de marcada vocação nacional galega, cujo objetivo era a reconstrução da Nação, tendo como ícones principais, o apego à terra, a sua tradição etnográfica e sobre tudo, à sua língua, que até o momento, todos os intelectuais reconheciam como uma variante da língua ibero-ocidental, conhecida pelo mundo com o nome de português e que na própria Galiza foi sempre identificada com o nome de “galego” de maneira ininterrupta desde os inícios.
Esses foram os começos, mas pelo meio houve vários terramotos políticos que desviaram e deturparam o projeto: duas ditaduras com um guerra civil pelo meio em que se imporia novamente o castelhano e uma tentativa, aparentemente democratizadora à morte do ditador que favoreceu a chegada duma autonomia descentralizadora, a qual implicaria a existência duma vida política galega interna, que se marcaria o objetivo fundamental de defender os interesses do país, assim como a oficialização da língua dos galegos que se supunha daria pulo ao nosso idioma tradicional. O franquismo tinha trazido a chegada dos média e a obrigatoriedade dum ensino público em castelhano, pelo que se começava a visualizar como o número de falantes do galego minguava pouco a pouco. Se nos inícios do século eram mais de 90% de falantes nativos, nos anos 70’s do século XX, havia um 80%, aproximado, de falantes, fluentes na língua do país. Mas aquela autonomia conseguida com sangue, suor e lágrimas, acabou pervertida em mãos de ex-franquistas, aqueles caciques que tanto tinha criticado Castelão nas suas obras literárias e nos seus comícios. Isto fez com que o idioma dos galegos, nas mãos dos que mantiveram o poder na ditadura, parecesse a galinha a ser guardada pela raposa. Tudo sob a olhada dum galeguismo abafado pelo momento histórico, inicialmente inexperiente, que necessariamente participava da legalidade construída pelos legisladores procedentes do antigo regime, carente dum sistema partidário plural e amplo que fosse capaz de atingir todo o espetro social galego e longe da bagagem pedagógica e tutoria do galeguismo anterior à guerra, exilado ou perdido nas valetas.
Para além disso, a marcação e a desconfiança do Estado, temeroso pelo tamanho do potencial da possível galeguidade consciente dum terceiro nacionalismo que menorizasse os partidos espanhóis no jogo parlamentar, manteve o movimento nacional galego sob o olho observador dos poderes estabelecidos. A gestão perversa da autonomia galega de quem era inicialmente contrário a ela, fez com que em quarenta anos de autonomia, o número de falantes passasse do 80% nos finais dos anos 70’s, a um escasso 50% em 2025, onde mais do 75% dos menores de idade resolvem a sua vida em castelhano, língua incutida desde as escolas, focos de castelhanização, desde os média espanhóis e desde uns média galegos de ínfima qualidade que serviram e servem de foco de difusão das diretrizes galegófobas do poder. É a primeira vez na história da Galiza em que o número de hispano-parlantes supera o número de galaico-parlantes, ou lusófonos, nativos, os quais sofrem um baixada maior, em quarenta anos, do que nos últimos cinco séculos.
A situação via-se vir, mas ainda que a notícia resultasse especialmente estridente, não causou uma grande sensação nos média galegos, que tiraram importância a esta notícia de grande profundidade histórica, só na população mais consciencializada, criando posicionamentos discursivos que, nuns casos serviram para reafirmar a galeguidade, embora noutros casos, para tirar a máscara de alguns etnosuicidas e linguófobos anti-galegos desnaturados. Por sinal, devemos lembrar, como o atual presidente da Junta partilhou espaço na manifestação contra a plena oficialidade do galego em fevereiro de 2009, organizada por uma associação que advoga pela negação da necessidade do conhecimento do galego, por todos os galegos. Essa manifestação foi bem valorizada publicamente pelos média espanhóis e pelo próprio partido do governo galego que se apoiou neles para ganhar as eleições ao Parlamento Galego desse ano, embora com um apoio do 28% do total dos votantes galegos[1]. Isto contrasta, com a negativa valorização que esse mesmo partido, ainda hoje no poder, manifesta contra a manifestação que se vai celebrar o próximo 23 de fevereiro em denúncia da política linguística executada na Galiza desde 1981 e que está levando a língua dos galegos à debacle.
Dentro de todo este caos, a gestão da língua tem sido muito eficaz para causar este dano enorme enxergado agora, com o apoio de alguns autodenominados galeguistas que exerceram de eficiente correia de transmissão dessa gestão durante muito tempo. É agora que se vê como a língua se esfuma, quando sentem o apuro de protestar contra a perda de falantes. Como se fossem inocentes.
A consideração do galego como uma língua independente do resto do ibero-românico ocidental, sendo-lhe aplicado um padrão linguístico dependente do ibero-românico central e portanto, um protótipo antinatural e daninho, tem sido a arma fundamental desta prática glotofágica que fornece uma imagem de inutilidade e subserviência a respeito da língua do Estado. Os criadores da arma têm sido a RAG (Real Academia Galega) junto com o ILG (Instituto da Língua Galega), instituições oficiais no organograma do poder, que determinaram a feição da língua e portanto essa imagem inoperante de língua dispensável. Para além da castelhanização maciça do seu corpus gráfico, léxico, morfossintático e o tratamento de falar subsidiário e dependente do castelhano, levou-se a cabo a deturpação das falas nos media e no ensino, e nos últimos tempos, a proibição de ministrar aulas nas matérias técnicas e científicas na língua do país, nomeadamente, Matemáticas, as Ciências Tecnológicas, assim como a Física e Química[2]. Todo isto foi efetivado pelos gestores, nomeadamente, os distintos governos galegos havidos desde os inícios da autonomia até agora.
Da mesma maneira, a situação de apuro provocada pelo independentismo catalão dentro do Reino da Espanha, obrigou à negociação e à pressão sobre a gestão das línguas do Estado, pondo em questão a histórica política supremacista de signo castelhano praticada na Espanha, reposicionando os galeguistas nesse tabuleiro de xadrez. A vontade de oficializar o catalão e o basco na União Europeia faz com que os nacionalistas galegos respondam na mesma medida, imitando as estratégias e duplicando os objetivos, como se as línguas fossem iguais ou como se estas apresentassem uma mesma problemática. O seguidorismo do nacionalismo galego levou a pedir a oficialização do galego nas mesmas instâncias, o que poderia ser viável para o catalão, incluso para o basco se certas circunstâncias se derem dentro do próprio Estado Espanhol. Mas no caso galego, e tendo em conta todos os condicionantes identitários da língua, assim como os reconhecimentos das legalidades linguísticas presentes na própria UE, parece-nos coisa inviável e impossível, sobretudo, se esse galego mantém essa padronização de novilíngua castelhanizante de recente criação e essa falsa filosofia de “língua irmá pero diferente” do português, adaptada do elaboracionismo croata, surgido do infeliz conflito linguístico da antiga Jugoslávia, em que uma língua una, falada em quatro países, passam a ser quatro línguas escritas diferente[3]. Do nosso ponto de vista, o pedido de oficialização do chamado “galego” nas instituições europeias está errado. Não nos parece viável, pois como português, já é oficial desde 1986, e nomeadamente como galego, desde 1994, em que José Pousada, deputado galego da C.G. (Coligação Galega), fez os trâmites para assim ser reconhecido[4]. Se não for assim, a deputada Ana Miranda não poderia intervir num plenário do Parlamento como tantas vezes tem participado, na sua língua[5] ou vermos o absurdo de presenciarmos outra deputada galega a pedir a oficialização do “galego” falando em galego[6]. Um basco ou um catalão não poderiam fazer isso, porque as suas línguas, infelizmente, ainda não são oficiais, mas uma galega, sim pode fazê-lo, justamente, porque a sua língua é oficial. Valle-Inclán, teria achado um magnifico tema para uma obra[7].
José Pousada
A praxe de usar a língua dos galegos no Parlamento Europeu não é nova, pois, anteriormente o deputado Camilo Nogueira e antes, o próprio José Pousada levaram a cabo essa prática linguística com total consciência de estarem utilizando de maneira oficial a sua língua num âmbito supranacional.
O pedido de oficializar, já não uma língua como é o basco ou o catalão, mas uma variante duma língua, nascida na Gallaecia medieval, e já oficial na UE, com um padrão diferente à usada historicamente, consolidaria a desfeita linguística na Galiza e cumpriria com os objetivos da política do PP, cujos resultados estão à vista nos últimos tempos. A oficialização de variantes das línguas já oficiais, mas implementadas com normas diferentes às reconhecidas e consolidadas como normas cultas e de prestígio histórico, parece-nos absolutamente impossível, porque se isso se levasse a cabo, saberíamos do caos internacional que isso causaria. A comunidade internacional veria nascer línguas novas que não têm razão de ser, como o norte-americano, o australiano, o quebequense, o argentino ou dentro da própria Europa, o valão, o andaluz, o romanhol, o picardo ou o brandemburguês, desafiando toda a praxe racional do uso das línguas dum ponto de vista internacional e seria contrário a toda funcionalidade linguística. Num caso esmagador como este suposto, a União ver-se-ia, irremediavelmente, na necessidade de reconhecer de maneira absolutamente urgente uma única língua oficial, que provavelmente seria o inglês, para glória do Tio Sam.
Esta tentativa de oficializar a variante galega, também não é nova, houve uma tentativa no governo de Tourinho, presidente da Junta da Galiza entre 2005 e 2009, em que se atribuiu a primazia do uso do “galego” na Europa[8], sem ele saber que anteriormente, até representantes de certos movimentos sociais galegos na defesa dos interesses legítimos da Galiza, têm estado presentes em Bruxelas usando a língua do país[9].
A saída para a língua dos galegos na UE é o reconhecimento por parte das autoridades galegas e espanholas da oficialidade do galego como variante do português, com o padrão português e uma gestão da língua similar à do alemão, o qual tem diferente gerenciamento se é para a Alemanha ou é para a Áustria. As diferenças internas de ambas falas alemãs, quer da República Federal como da República austríaca, exigem um tratamento diferente sendo a mesma língua. O chamado Protocolo Nº 10 garante o reconhecimento da variante austríaca sob a lei internacional do alemão austríaco, percebendo o alemão como língua pluricêntrica. Em parte e em relação à língua dos galegos, assim é reconhecido no Informe Killilea elaborado por José Pousada em 1994 com o apoio do Presidente do Parlamento Europeu na altura Egon Kelpsch, em que se reconhece o galego como uma variante nacional galega da língua portuguesa[10].
Este desleixo histórico exercido contra a língua é visualizado agora, quando se percebe muito perto o abismo linguístico e algumas organizações são capazes de tomar consciência do fiasco praticado nos últimos quarenta anos em que se investiram milhões e milhões de pesetas, antes, e de Euros, depois, numa suposta “normalização” do galego, cujos resultados estão-se vendo inversos aos predicados durante muito tempo, insistindo e reincidindo no erro uma e outra vez, justificando, mesmo desde algum falso galeguismo, as políticas de substituição linguística da Junta. Em qualquer país normal, isto seria considerado um suposto delito de prevaricação, que ninguém pareceu ver nunca… O que resulta muito curioso é que agora, algumas destas instituições façam como se estivessem indignadas, como se não fossem também responsáveis como instrumentos do desastre. É hora de abrir os olhos, de o galeguismo mudar de estratégia, de desmascarar os autênticos objetivos e tirar-lhe a máscara àqueles que quando iam nas manifestações em favor da “imposición del gallego” arguissem que estavam a defender não sei bem quê tipo de liberdade, mas agora que há galegos que vão manifestar-se pela sua língua, resulta que estão politizados e a iniciativa é pouco menos do que horrível. A Galiza tem um cancro, representado por uma toxicidade política e linguística de longa data que parece não ter fim. Só parece ter fim a nossa língua e a nossa condição de galegos. Superemos o cancro com medidas decididas por parte do galeguismo, entre as quais está a de mudar absolutamente de rumo, tanto do ponto de vista linguístico, como político.
Esta é uma história muito mal contada, muito deturpada pelos média em mãos de políticos funestos apoiados na desinformação, no desconhecimento da gente e no pior da praxe política. A Galiza não merece isto, os galegos não merecemos isto, a língua dos galegos, o galego, o português da Galiza, não merece isto. A nossa língua é internacional, é oficial na UE e em todas as organizações internacionais em que qualquer país lusófono estiver presente, só é mal tratada numa importantíssima parte do seu lugar de nascimento, na Galiza de hoje, e os galegos devem reagir, por supervivência, por dignidade e porque não se podem permitir ver como a sua língua ancestral, língua de reis e de poetas, se veja jogada pelo vaso da sanita por um conjunto de malfeitores com poder.
Acordem e reajam, já. O duvidoso mérito de obter o recorde Guinness duma administração governamental em reduzir o número de falantes duma língua no menor tempo possível, têm-no os governos da Comunidade Autónoma Galega e com semelhante marca não cabe outra coisa do que desconfiar dele. Esta gente, responsável dos destinos da Galiza e da sua língua nos últimos quarenta anos, não cabem no conceito de democracia.
[1] O sistema eleitoral galego, seguindo a lei d’Hont não favorece a representação de partidos políticos com menos do 5% dos apoios, o que favorece as maiorias absolutas continuas e constantes do partido que leva no poder quase quarenta anos. Isso, junto com as denúncias por irregularidades legais, corrupção e outras perversões políticas e penais, favorecem a perpetuação no poder do partido em questão. Nessas eleições, o 28% é do censo total, incluídas as abstenções. Lido de outra maneira: O 72% dos votantes galegos não apoiou o partido que governa com maioria absoluta na Galiza desde 1981 (exceto seis anos, o que nem chega às duas legislaturas completas)
[2] DECRETO 79/2010, de 20 de mayo, para el plurilingüismo en la enseñanza no universitaria de Galicia: https://www.xunta.gal/dog/Publicados/2010/20100525/Anuncio17BE6_es.html
[3] http://despertadoteusono.blogspot.com/2024/08/o-servo-croata-um-mal-exemplo-para-os.html
[4] https://despertadoteusono.blogspot.com/2012/02/o-galego-ja-e-oficial-na-uniao-europeia.html
[5] https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=VgxR3XHhKaM
[6] https://www.youtube.com/watch?v=OvC-QfiR9wc
[7] Valle-Inclán, escritor galego em castelhano, foi o precursor dum estilo literário denominado de Esperpento, que se carateriza pela apresentação grotesca e bizarra dos personagens, as circunstâncias e o abuso do contraste e distorção da realidade.
[8] https://despertadoteusono.blogspot.com/2011/12/nossa-lingua-nas-instituicoes-europeias.html
[9] https://despertadoteusono.blogspot.com/2014/05/manuel-garcia-do-mel-eu-falei-galego-no.html
[10] https://www.youtube.com/watch?v=Zxe_CieHB_U
Rueda, atual presidente da Junta, na manifestaçao contra o galego