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BLOGUE DO MINHO

Espaço de informação e divulgação da História, Arte, Cultura, Usos e Costumes das gentes do Minho e Galiza

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FILÓSOFO JOAQUIM DE CARVALHO EVOCOU A FIGURA DE ALVES DOS SANTOS

No dizer de José de Pina Martins, Joaquim de Carvalho foi “Historiador da Filosofia e da Cultura, pensador e ensaísta, erudito e professor, Joaquim de Carvalho foi, nas quatro décadas que vão de 1918 a 1958, ano da sua morte, uma das maiores figuras, em Portugal, dos estudos a que se dedicou, e em todos estes domínios do scibile deixou a marca duradoura da sua personalidade de exceção.”. É precisamente de Joaquim de Carvalho a evocação do Dr. Augusto Joaquim Alves dos Santos, apenas oito anos decorridos sobre a data do seu falecimento.

“O Dr. Alves dos Santos

Dobraram já oito anos sobre a morte do Dr. Augusto Joaquim Alves dos Santos, e este lapso de tempo, mais que suficiente para suportar no olvido a maioria dos homens, não me quebrantou a evocação afetuosa do mestre, do colega e do amigo. Fui seu discípulo, e, apesar de me ter orientado desde a escolaridade para uma conceção da vida diversa da sua, o seu magistério selou indelevelmente a minha formação. Pode a vaidade tingir-me de ilusão o orgulho de pensar que contei sempre comigo próprio; mas o orgulho volve-se em modéstia humilde quando revivo a incitação e alento com que o Dr. Alves dos Santos me fortaleceu o ânimo na fase mais intensa e crítica da minha preparação para o ensino universitário. À estima veio juntar-se assim a gratidão, e, pelo convívio, em breve uma e outra se fundiram no sentimento da amizade inalterável.

Discordei pública e particularmente de atitudes suas, ditadas ou condicionadas pelas circunstâncias políticas, e embora em certo momento a discordância atingisse as fronteiras do isolamento, no meu íntimo jamais se apagou a flama da amizade, que afinal se reavivou com maior intensidade pelo sopro do afeto e da mútua compreensão.

Confiou-me algumas confidências nos derradeiros dias, e senti angustiosamente o seu drama interior e o conflito da razão lúcida com a aproximação, dia a dia mais insistente, da morte. Pertencem à piedade dos íntimos esses dias lancinantes, em que a agonia do espírito se estrangulava em palavras de som indistinto e confuso pela violência do morbo que lhe corroía a garganta, porque ao público só interessa o perfil da pessoa.

Nunca lhe ouvi palavras de recriminação e muito menos de ódio, e mesmo quando a hostilidade lhe instilava a sensação gélida do isolamento, o Dr. Alves dos Santos, que tinha o arrebatamento, e até a irreflexão, dos afetivos, persistia no desejo de servir e colaborar, não por temor ou ardil, mas por congénito otimismo, que era a face psicológica da fluência e exaltação do seu verbo de orador. Com o saber dos livros e conhecimento dos homens poderia ter sido um demolidor, como o são, foram e serão por imperativo psicológico quase todos os que a meio da vida cambiam o rumo da sua existência social. Tinha a consciência destas possibilidades, porém jamais transpôs o impulso ou o ressentimento para a ação, por ditame da tolerância e do respeito da pessoa.

Demais inibia-o ainda a ética profissional, tal como era entendida e praticada na Universidade do seu tempo, porque o Dr. Alves dos Santos foi acima de tudo professor. O público conhecia-o principalmente como orador sacro e profano, que o foi notável tanto no púlpito como na tribuna, embora tivessem tido ressonância as suas campanhas pedagógicas e os seus esforços para a melhoria da administração do ensino primário como inspetor da Circunscrição escolar de Coimbra (1903-1904).

Algumas inovações que introduziu nas escolas primárias de Coimbra, como o ensino da ginástica sueca, e a organização de comissões de benefi­cência e ensino na sua circunscrição, ecoaram em todo o País, e do entu­siasmo com que se devotou a esta obra deu e dá flagrante testemunho a Estatística numérica e gráfica das Escolas Primárias da 2.a Circunscrição (Lisboa, 1906), que lhe valeu os maiores elogios e lhe deu algumas das horas mais alegres da sua vida. Muita vez me falou na benemérita campanha, mas insisto em dizer que Alves dos Santos foi acima de tudo professor. Iniciara o magistério na Faculdade de Teologia e nele se conservou até à extinção da Faculdade em 1910 — extinção que, apesar de universalmente esperada, mesmo pelos teólogos universitários, cujo silêncio se tornou sinónimo de aplauso, foi um erro, porque os estudos teológicos embora involuam entre nós jamais cessaram e se forçou o clero a ilustrar-se em escolas teológicas do estrangeiro.

Após uma breve passagem pelo Gabinete da Presidência da República, servindo Teófilo Braga, foi nomeado em 1911 professor da Faculdade de Letras de Coimbra, para a qual transitaram quase todos os professores da extinta Faculdade de Teologia.

Foi então que o conheci como professor.

Ensinava Filosofia. As suas lições denunciavam o orador. Era fluente, elegante na dicção, e se alguma coisa emergia o emprego de esquemas e na ordenação dos argumentos, nos quais vejo hoje um eco do tempo em que se debruçara sobre compêndios de inspiração escolástica.

Só a forma, ou melhor, a arquitetura da lição, tinha um vago sabor escolástico, aliás admiravelmente dissimulado na elegância verbal da frase, porque o fundo, a matéria e a conceção da vida, que teciam e norteavam o objeto das lições eram a-escolásticas, quando não anti escolásticas.

Uma disciplina dominou o seu ensino: a psicologia. Iniciara o novo curso da sua vida docente sob a influência da psicologia experimental, de sorte que o psicologismo, transportado quase a disciplina filosófica funda­mental e exclusiva — conceito felizmente em ocaso entre nós —, assim como o positivismo estreito foram os supostos da sua conceção filosófica. Por isso, as suas lições, sempre sugestivas e por vezes admiráveis, perderam em sedução metafísica o que alcançaram no descritivo dos factos.

Sob este aspeto, sem ser um discípulo de Comte,— seduzia-o o empiriocriticismo de Mach —, Alves dos Santos, foi talvez o último representante em Portugal do positivismo, no sentido amplo do teimo. A ele se deve em Coimbra o Laboratório de Psicologia, o primeiro que se organizou em Portugal, no qual fez estudos de estesiometria e dos tempos de reação, assim como investigações sobre o crescimento das crianças portuguesas.

Sem apreciar o valor atual destes trabalhos, devo acentuar no entanto que eles definem uma atitude de espírito e sobretudo uma direção de ensino, que foi honrosamente reconhecida por Claparede, o grande pedagogista de Genebra, no seu famoso compêndio.

A esta luz, Alves dos Santos conquistou um lugar inconfundível na história da psicologia e da pedologia em Portugal. Poderão os vindouros dissentir da sua metódica e dos resultados que estabeleceu, mas lembrarão sempre o seu nome como o de alguém que não ocupou obscuramente a cátedra universitária e soube criar desde a raiz um ensino que não existia em Coimbra. Se o psicologismo orientou a direção do seu espírito, o patrio­tismo foi o alvo da sua atividade docente. Já incutindo nos alunos senti­mentos e ideias de confiança no futuro de Portugal, já procurando dar expressão científica a certos problemas de psicologia e pedagogia.

Quando o filósofo Victor Cousin trocou um dia a cátedra da Sorbonne pela pasta ministerial justificara-se perante os amigos com a necessidade de atuar, servindo e colaborando. Foi este também o impulso incitador da atividade política de Alves dos Santos. Clientela pessoal nunca a criou, e se por acaso a tivesse herdado era incapaz de a manter; em compensação, porém, tinha o sentimento vivo dos interesses gerais.

Vivia no desejo de os realizar, e de uma forma tão intensa, que se esqueceu dos seus interesses pessoais. Servindo a República como cidadão, deputado e como ministro, vendo dia a dia dilatar-se o círculo da sua atividade, persistiu no entanto fiel e incomovível à sua missão de professor.

A imagem de Alves dos Santos viverá no meu espírito pela sua amizade, pela lealdade de colega e pela sua inteligência, e aos indiferentes ou adversários que o recordem eu peço apenas que respeitem a sua memória, como ele neles respeitou a liberdade de opinião e de consciência.

Coimbra, Natal de 1932

Joaquim de Carvalho”