ARCOS DE VALDEVEZ: À SENHORA DA PENEDA OS DEVOTOS IAM DE CAIXÃO
Ao santuário da Senhora da Peneda, situado na serra minhota do mesmo nome, onde de 1 a 8 de setembro de todos os anos acorrem muitos milhares de peregrinos, até ao final da primeira metade deste século, os romeiros que pagavam promessas iam metidos dentro de caixões.
Algumas pessoas da região, principalmente as de mais idade, ainda se lembram de tão estranho ritual, o qual tinha a ver com o fato de os miraculados, aos sentirem-se curados por promessa feita à santa, pretenderem demonstrar não só a sua gratidão como teatralizar o que lhe teria acontecido caso os poderes divinos não lhe tivessem dedicado a sua benéfica e misteriosa ação.
Alguns dos “defuntos” da Senhora da Peneda ainda são vivos e o padre Bernardo Pintor, no seu livro sobre este local do culto a que deu o título de “Uma Joia do Alto Minho”, regista fartas referências sobre o insólito e antigo costume de se entrar no santuário devidamente amortalhado em vida.
“Na Peneda muitos romeiros eram levados em caixões como se fossem defuntos – escreve o padre Bernardo Pintor, prosseguindo – e o trajeto era desde o pórtico, lá no fundo das capelas, até á igreja, enquanto alguns iam também de caixão até ao cemitério”.
Cortejo de “mortos” ainda vivos
Os inúmeros cortejos “funerários” tinham, assim, de subir quase duzentos degraus, enquanto o penitente, baldeando-se dentro da urna pela irregularidade continuada do caminho ascendente, por certo teria tempo para meditar e concluir em como são vãs as ilusões, as paixões, o orgulho e as vaidades da vida.
Parecido, em certos pormenores, com os antigos métodos de iniciação, o cortejo dos mortos-vivos era acompanhado, por vezes, pela banda de música e quando chegava ao interior da igreja dizia-se Missa a que alguns assistiam ainda dentro do caixão, em geral já aberto, outros ao lado havendo até quem mandasse cantar ofícios de defunto por si próprio.
O autor de “Uma Joia do Alto Minho”, inclusivamente, recorda: “Tudo isto observei de pequeno e lembra-me de ouvir falar de uma pessoa que foi até à beira da sepultura, mandada abrir no cemitério, onde lançou a sua roupa exterior, e, também de uma outra que seguia em caixão aberto mas que se impressionou de tal modo ao entrar no templo que saltou fora e rachou a cabeça de encontro aos umbrais da portaria”…
Aliás, os sacerdotes do velho Egipto já sabiam que o facto de se permanecer dentro de uma caixa de madeira com certo formato, usualmente destinada a encerrar cadáveres, constitui um paradigma de grande intensidade cuja prática poderá levar a mente dos vivos a processos de meditação sobre as realidades da sua existência capazes de despoletarem estados de consciência mais elevados.
Trata-se de um processo rápido para atingir aquilo a que o investigador contemporâneo Peter Russell chama “contacto com o nível universal do Eu”, aliás conhecido desde tempos imemoriais, mas que tanto pode resultar na iluminação do Ser como no pânico do peregrino, tal como o padre Bernardo Pintor lembra, que saltou do caixão de tal forma apavorado ao ponto de rachar a cabeça de encontro aos umbrais da igreja.
Na natureza nada dá saltos e sendo a carne para os adultos e o leite para as crianças, inevitavelmente que o mesmo remédio tanto pode curar um doente como matar outro, devido aos efeitos secundários…
Victor Mendanha in Correio da Manhã, 19 de julho de 1993