O SANTUÁRIO DO BOM JESUS DO MONTE VISTO POR UM LISBOETA EM 1921
Numa altura em que se assinalam os 200 anos do Santuário do Bom Jesus do Monte, em Braga e ainda fumegam algumas cinzas das comemorações recentes do centenário da implantação da República em Portugal, pareceu-nos interessante reler um artigo publicado na revista Ilustração Portugueza, nº 830 de 14 de Janeiro de 1922, publicação cuja orientação política é claramente identificada.
“O BOM JESUS DO MONTE
É do Bom-Jesus, do patriarchal Bom-Jesus, escadorio por onde o Padre-Eterno desce a fazer abades, que eu venho visitar o Chiado, esse Arco-Iris onde estoiram as cores brutaes do ócio e do “Jazz”.
Todo o Bom-Jesus, todo este Sactuario onde os mínimos detalhes são muito anteriores á Separação da Egreja do Estado, é uma leitura do Evangelho, uma taboleta cristã.
E o Chiado, essa montanha que os eléctricos ainda não escalaram, também tem egrejas, trez egrejas, e também é uma taboleta; mas ahi anuncia-se “le denier cri” dos corpos nus, risca-se o cubismo dos figurinos, promulgam-se as cabelos borradamente louros, as sedas, “the shimmy”, “the fox-trot”, “le rouge”, “les bas-bleus”, tudo á mistura com as casacas vermelhas dos zíngaros, com as filagranas dos sorrisos, com a altivez das “midinettes”, com Lisboa inteira que desaba sobre o Chiado…
Emquanto que, aqui, vive-se a tranquilidade das longas horas, a monotonia dos longos serões. E os typos camilianos afirmam-nos que Camilo não é uma “blague”.
Mas as egrejas de Lisboa diferen das do Minho; aqui, embora exibam figuras pagãs, cabeças chavelhudas, n’uma talha preciosíssima, as egrejas são recatos onde ainda há certa devoção; as de Lisboa, caso sabido, são “vitrines”, palcos onde os sentimentos saracoteiam um bailado de “flirt”, de zum-zum de “rendez-vous”.
A gente da cidade não acredita, sequer, que no ano MCMXXI, da era de Cristo, ainda haja quem cumpra o voto d’umas tantas voltas de joelhos sobre o lagêdo das sacristias…
Pois é verdade! Isto e bastante mais!
O Bom-Jesus é ainda primitivo, é ainda fiel ao seu nome, embora os abades, os pastores d’este largo rebanho que se desdobra até terras espanholas, adorem o Senhor da Egreja, e o verde genuíno no tasco.
Mas, apesar d’isso, Bom-Jesus, capital de Braga, é o Vaticano de Portugal! E o Papa será, decerto, bem substituído pelo Longuinhos “casamenteiros”, em torno do qual as velhas vêm cumprir a promessa das trez voltinhas!
Quanto á vida dos Hotéis, suponho-a suficientemente indicada: não nos chegam os ecos francezes da capital de Portugal! Jogos de prendas, cantigas de João de Lemos, recitativos de Tolentino, quasi mazurkas e polkas. Verdade seja, porém, que, talvez por convenção, á data da minha chegada já tinha sido abolida a etiqueta de “senhoria”…
Quanto perdeu Fradique em não ter descoberto este canto de Portugal legítimo!
Os Hotéis têm uma carranca quase conventual; nas salas há uma atmosfera larga, que entra pelas grandes janelas, que se espalha pelas paredes brancas; os corredores são extensos, medonhamente extensos. E o Bom-Jesus, nas horas que se seguem ao almoço, parece adormecer ao sol, estiraçado, espreguiçando a digestão…
É a hora em que todos dormem ou, cabeceando, discutem, patrioticamente, os 50 milhões de “dollars”…
Terra portugueza, bom verdasco, melancias rechonchudas, romarias ao Sameiro, ao Alívio, á Consolação, e a crítica honesta a cochichar pela fresquinha, entre rizadas, ao canto de cada rua…
Só á noite se passeia. Á noite ou de manhã, E é delicioso, então, cruzarmo-nos com aqueles celebres bandos minhotos, quebrando a nota dos estômagos dilatados, cantam em algazarra:
A Senhora do Sameiro
bota fitas a avoar,
vermelhinhas e branquinhas
todas vão cair no mar…
Outras vezes, os moços provocando:
Toda a noite chove papas,
trabalharam as colheres,
Quem quizer ouvir má língua
é da boca das mulheres…
Depois, pacatamente, tudo recolhe.
Fazem-se grupos onde todos falam, todos, os ponderados chefes de família, os rapazes inteligentíssimos, as meninas prendadas.
E n’esta vida mole, bocejos d’uma felicidade obesa, o tempo vae-se arrastando, systematicamente, entre as primeiras Ave-Marias e a ultima contra-dança.
Hotel do Parque – Setembro 1921
GUY M. RATO