ESCRITOR GALEGO ALFONSO CASTELAO ESCREVEU A SALAZAR
Alfonso Castelao é uma das figuras cimeiras das letras e do nacionalismo galego. Nasceu em Rianxo, em 30 de janeiro de 1886, e faleceu em Buenos Aires, na Argentina, em 7 de janeiro de 1950.
Entre a sua vasta obra contam-se “Cego de romería”, “Un olho de vidro”, “Os cruceiros de pedra na Galiza”, “Cousas”, “Cincoenta homes por dez reás”, “Os dous de sempre”, “Retrincos”, “Galiza Mártir”, “Atila em Galicia”, “Milicianos”, “Sempre en Galiza” e “Os vellos non debem de namorarse”.
CARTA DE ALFONSO CASTELÃO A SALAZAR
Como vosselência não deixaria chegar ao povo português a voz dos patriotas galegos, queremos que, pelo menos, chegue a vosselência a queixa dorida de dois galegos que sempre amaram Portugal.
Asseguram que vosselência crê em Deus. Não o sabemos… E não o sabemos porque Deus ―infinitamente bom, sábio, justo e, ademais, imortal― não quis ser Ditador e concedeu-nos o livre arbítrio para que nós mesmos buscássemos o caminho da felicidade, enquanto que vosselência ―cativo verme, que se considera feito à imagem e semelhança de Deus― não teve dúvida em aprisionar a liberdade do povo português, a asfixiar a livre emissão do pensamento e submeter a nação portuguesa ao seu capricho. Grande pecado de soberba, senhor Ditador!
Não sabemos se vosselência é um Ditador tão vaidoso como Mussolini e Hitler (vemos que não gosta tanto dos fotógrafos); mais, ainda que o fosse, não cremos que vosselência pretenda tapar com a sua figura os progenitores da Pátria lusa. Eles conquistaram a independência da Nação portuguesa e vosselência está jogando-a agora na roleta internacional, em conluio com os inimigos da liberdade.
Não sabemos se a História perdoará os seus delitos, tão graciosamente como a mais alta hieraquia da Igreja lhe perdoa os seus pecados. Contudo, não se julgue seguro no castelo de fumo que a imaginação de vosselência criou, porque o povo tem um sentido incoercível de justiça e do seu cerne podem surgir juízes terrivelmente vingativos.
Mas no entanto é forçoso reconhecer que vosselência manda hoje em Portugal.
Por que ajuda vosselência os militares espanhóis, que se ergueram em armas contra o Poder legitimamente constituído? Mediu vosselência os riscos que de semelhante ajuda podem derivar para o Estado português? Porque a beligerância de Portugal na guerra civil espanhola é, simplesmente, uma imprudência temerária, que não abona o talento de vosselência. Tenha vosselência por bem seguro, além do mais, que Espanha* vai ser a campa do fascismo internacional, porque vencer a um povo em armas, dentro do próprio território, não é vencer a força máxima do seu pensamento nem matar a razão que o assiste. A luz das estrelas não se apagará soprando desde Roma. Agora bem; as ajudas fascistas prolongarão a guerra e agravarão os seus resultados, em prejuízo, naturalmente, das concepções que vosselência defende.
Mas nós iremos falar somente como galegos para que apareça mais avultada a gravíssima intervenção de vosselência.
Sabe vosselência que Galiza tem todos os atributos de uma nacionalidade ¾língua, terra, história, arte, espírito, etc.¾, e que, portanto, seria fácil fomentar ali um ideal patriótico de carácter separatista; mas nós aspirávamos, modestamente, a uma simples autonomia que garantisse o livre desenvolvimento da cultura autóctone e que nos permitisse resolver os problemas vitais que a morfologia social e económica de Galiza tem estabelecidos. Sabe vosselência que Galiza apresentou às Cortes da República espanhola ¾três dias antes de rebentar o movimento subversivo¾ um Estatuto autonómico proposto pela quase totalidade dos Concelhos e aprovado, em plebiscito recente, por setenta e cinco por cento do Corpo eleitoral; ou seja, depois de vencer com o mais rigoroso zelo as condições que a Constituição exige. Crê vosselência, senhor Professor de Direito, que nós realizámos algum atentado criminal? Pois a fronteira portuguesa não se abriu para os autonomistas galegos, que fugiam da morte, negando-lhes vosselência o direito de asilo a homens que viviam dentro da Lei e que não cometeram maior delito do que defendê-la. E a polícia de vosselência ¾a polícia de um país que aboliu a pena capital¾ entregou muitos galegos para que fossem assassinados.
Sabe vosselência que Portugal reclamou e conquistou, violentamente, a sua independência nacional, mais do que para romper a unidade hispânica, para não se submeter à tirania centralista. Portugal não queria morrer assimilado por Castela, e num arroubo de génio rompeu as amarras familiares, pediu separação de bens e foi viver a sua vida na melhor frente do lar comum, na grande frente do Atlântico. Não há dúvida que foi Portugal quem quebrou a unidade hispânica. E fez bem. Agora, senhor Professor de Direito, sabe vosselência que o “motivo patriótico” que invocam os militares espanhóis, para justificarem o seu crime, foi provocado pela generosidade constitucional, pois, segundo eles, a concessão das autonomias regionais põe em perigo a “sagrada unidade da pátria”, quando, na verdade, serve para fortificá-la. Sabe vosselência que os militares facciosos defendem, somente, um sistema ¾um sistema unitário e centralista¾, que causou a perda do nosso império colonial depois de desintegrar a Península e acirrar novos separatismos. Sabe vosselência que esses militares desprezam olimpicamente Portugal, sem o conhecer, e guardam no seu interior um anseio irreprimível de reconquistá-lo pela força, enquanto que os povos autónomos da República espanhola seriam sempre uma garantia da independência de Portugal e um estímulo eficaz de aliança peninsular. Sabe vosselência que o triunfo do fascismo em Espanha supõe o regresso de Catalunha, Euzcadi** e Galiza à tirania centralista ¾tirania que Portugal não suportou¾. E não falamos do que a Portugal pode sobrevir-lhe do triunfo das ideias totalitaristas e a participação de uma Espanha ensoberbecida no concerto europeu. Crê, vosselência, senhor Ditador, que Portugal pode dignamente ajudar os militares espanhóis no afã de abolir as autonomias e contribuir para a morte da democracia na Europa? Pois vosselência ajuda a esses militares, concede asilo generoso aos facciosos e aos políticos do velho sistema, convertendo Portugal em “galinheiro de Espanha”.
Sabe vosselência, apesar de ser judeu, que Galiza e Portugal formam, etnicamente, um mesmo povo. Foram-no no amanhecer da História e caminharam juntos muito tempo, a falar e a cantar no mesmo idioma. Juntos ergueram um dos mais belos momentos do mundo: a grande poesia lírica dos Cancioneiros galaico-portugueses. Juntos criámos uma cultura e um modo de vida. E o rio Minho era o nosso pai. Sabe vosselência que ainda depois da malfadada separação, Galiza e Portugal queriam-se como dois namorados. Portugal era o moço forte, que partiu para a guerra e Galiza foi a moça que ficou a tecer saudades. Galiza dera a Portugal, como prenda de amor, a fala e a arte; Portugal deu muitas vezes a Galiza o socorro do seu braço forte. Sabe vosselência que a separação foi desventurada. A Portugal faltou-lhe a força “frenética” de Galiza e enloqueceu; à Galiza faltou-lhe a força “simpática” de Portugal e esmoreceu. A Portugal faltou-lhe o “caminho estrelado da Europa” e à Galiza faltou-lhe a continuidade na História. Portugal esqueceu-se da Galiza e desgastou o seu sangue com misturas de cor; Galiza esqueceu-se de Portugal e ficou estéril para conceber. Pois bem, senhor Oliveira: sabe vosselência que os galeguistas éramos algo mais que políticos.
Respeitávamos ¾como não!¾ a fronteira que separa os dois Estados peninsulares: mas queríamos asas para voar e comunicarmos convosco, sobre o Minho, por cima dos carabineiros e dos guardas fiscais. Queríamos voltar a falar e cantar no mesmo idioma. Com canto amor pensávamos em Portugal! Deve saber vosselência que o nosso amor a Portugal valeu-nos o ódio dos chamados “nacionalistas” espanhóis e que foi justamente esse amor o delito mais grave que se nos imputa.
Crê vosselência, senhor Oliveira, que os galeguistas estávamos infectados de alguma enfermidade perigosa para o povo português? Pois vosselência tratou-nos como empestados, metendo galeguistas em cadeias imundas ou entregando-nos aos assassinos da “Falange Espanhola”.
Sabe vosselência que os intelectuais portugueses e galegos começavam a formarem uma comunidade cultural que seria outro expoente da nossa estirpe atlântica. Chamávamo-nos “irmãos”, e Rosalía de Castro era o “corpo santo da saudade”. Um poeta amigo de vosselência, quis engaiolar a Galiza com este chamamento: “Deixa Castela e vem a nós!” Sabe vosselência que os galeguistas fechávamos os ouvidos a todo chamamento ilícito; mas queríamos ser fiéis aos legados da tradição, e cada vez nos sentíamos mais empurrados face a Portugal. O rio Minho queria juntar-nos de novo. Sabe vosselência que os jornais portugueses ¾submetidos à censura governativa¾ seguiram com simpatia os incidentes do movimento autonomista em Galiza e não dissimularam o seu contentamento ante o resultado favorável do plebiscito estatutário. Outro tanto fizeram já quando se resolveu o pleito catalão. Tudo nos fazia supor que Portugal ansiava uma estruturação federativa do Estado espanhol, e nós sonhávamos ¾para quê negá-lo?¾ com que algum dia se consagrasse definitivamente a irmandade galaico-portuguesa. Pois bem, senhor Oliveira: vosselência matou as nossas ilusões. Crê vosselência que se pode ajudar descaradamente aos imperialistas espanhóis? Pois vosselência tornou-se cúmplice desses assassinos que cometeram em Espanha o crime mais arrepiante que a História regista. E vosselência fechou as portas, sempre abertas, da nossa República, aos seus próprios amigos, que algum dia renderão contas ante a justiça inexorável do povo português.
Sabe vosselência que na Galiza ¾ainda irmã de Portugal¾ cometeram-se muitos milhares de assassinatos. Massacrou-se o melhor e mais puro da nossa mocidade. Fuzilaram-se centenas de mulheres. Mataram-se rapazes cheios de vida na presença de seus pais. As estradas apareciam, e ainda aparecem, diariamente orladas de cadáveres desfeitos, que não podem identificar-se.
Sacavam-se da cadeia os presos inocentes para serem assassinados pela noite. As autoridades ordenavam fuzilamentos sem prévia formação de causa. Enfim; abonda*** dizer que era uma honra ser julgado e fuzilado “oficialmente”. Sabe vosselência que falamos em tempo passado, mas que ainda hoje continua o massacre dos cidadãos galegos. Pelos jornais da nossa Terra ¾submetidos ao controlo militar¾ verá vosselência a insaciável criminalidade dos seus aliados e amigos. Sabe vosselência que para reconstruir o nosso lar desfeito provavelmente não nos fica mais que a reserva dos galegos que andam pelo mundo. Pois bem; estes galegos vingarão os nossos mártires e criarão uma nova Galiza que já não medirá sonetos em louvor de Portugal. Crê vosselência que os bons galegos ¾enlutados para sempre¾ podem viver sem amaldiçoar? Pois nós dizemos-lhe que vosselência causou o luto de muitas famílias galegas por não abrir generosamente as portas de Portugal. E dizemos-lhe mais: vosselência será para os sobreviventes de Galiza algo menos que um assassino; será um cúmplice de assassinos.
Alfonso R. Castelão e Ramón Suárez Picallo
In Nova Galiza, n.º 2 (20-IV-1937)
Versão de António Gomes Marques (não respeitando o novo acordo ortográfico)
Fonte: http://aviagemdosargonautas.net/