ARCOS DE VALDEVEZ É TERRA LINDA DE MAIS PARA QUE SE POSSA VIVER LONGE DELA!
Perdem-se nos tempos as origens das terras de Valdevez. As suas veigas férteis, ao longo do rio Vez, registam a fixação do Homem desde os finais do quinto milénio antes da Era Cristã, presença documentada através de numerosos vestígios arqueológicos como se verifica com as mamoas e antas e ainda as representações ruprestes existentes na estação arqueológica do Gião. De resto, os castros de Azere, Alvora e Cendufe constituíram povoados defensivos das gentes arcuenses do período pré-romano.
A organização eclesiástica durante a Idade Média associada às características geográficas do território determinou a organização das paróquias na qual assenta a actual estrutura administrativa. A reforma implementada por Mouzinho da Silveira veio a acrescentar-lhe as povoações do Soajo, Ermelo e Gavieira, traçando-se os limites do Concelho de Arcos de Valdevez tal como actualmente os conhecemos.
Escreveu o escritor arcuense Carlos Cunha a respeito de Arcos de Valdevez: “De qualquer lado que tente fotografar a paisagem da minha terra – tão variada e fluida na fluida mobilidade dos seus aspectos – sempre as mesmas imagens respondem ao apelo do mesmo aceno. Saio a porta – para sempre fechada – da casa de meus pais e vou seguindo a margem do rio, que se arroja, numa facada límpida, sobre a vila.
- Deus Nosso Senhor lhe dê muito bom dia!
De preto, escorrendo as ancas, a mulher vai andando para o mercado. Leva um cesto á cabeça; e da toalha muito branca rompe, como uma for vermelha, a crista alta de um galo. Ao chegar ao Ribeirinho – franja de casas estendida a todo o correr da estrada – paro. E fico a olhar o regato, que, embebido de sol, é um fio de sol entre salgueiros. Até que ali para cima uma janela se abre e a magia de uns olhos, que são toda a minha luz, vem dizer-me que a vida começou.
Crianças, de pés descalços e narizes calafetados de ranho, brincam ao longo da estrada. Um melro rasou o asfalto tintinando o seu guizo doido. Imóveis, os pinheiros da Contada parecem esculpidos em bronze; e mais para além, azulado de névoa e de distância, o Paço da Giela é quase uma aparição.
É dali que a certas horas o passado desce até ao burgo, se revê no pelourinho da praça – bem bonito, este dorso petrificado de angústia! –, erra entre as duas igrejas que, a distância, lembram castelos do Reno, e, depois de ter bebido em Salzedas uma água das origens, vai esmoer, nos dentes cariados das ameias, o seu protesto sem voz contra a digestiva incúria que mantém, atulhada de cacos e de lixo, a capelinha românica da vila.
Nas meias tardes de domingo, quando os sinos de S. paio e Salvador parecem carpir uma hecatombe, os namorados vão lá para os fins do campo apertar na carne aflita um pouco daquela primavera que vem das tílias. E, irrequieto, o binóculo das damas da outra banda espia o tempo perdido… Mas é sobretudo nas romarias, quase todas as noites de sábado, anunciadas por coloridas deiscências de fogo, que o povo da vila e aldeias abre uma válvula pagã aos quotidianos recalques de uma existência de penas. Ao resfolgar do harmónio, velhos e moços entram na dança; e no contido e súplice esvoaçar das mãos, nos movimentos das ancas e dos braços, há toda a plasmação de um rito em que não +e difícil surpreender gestos de redes ou sementes, ou cadências de remos sobre as ondas. O minhoto dança a paisagem. E seja na Senhora da Peneda – áspero e rugosos santuário da montanha – ou nessa varanda aberta sobre os longes, que é o monte do Castelo, ali a dois passos da vila, seja numa simples rifa ou descante, o que ele, ébrio de mosto e poeira, acima de tudo persegue, é uma fuga dionisíaca da vida.
Miguel Torga, na ácida ruminação de uma ironia em que o horror do verde não é apenas excesso de clorofila, acha que o Minho é bovino. Talvez. Mas ironias como esta são sempre uma mutilação: pede-se um retrato e sai uma caricatura. Pois a verdade é que, no rápido caleidoscópio dos seus aspectos, o Minho polariza em si o que de melhor contém as outras províncias portuguesas. E não é preciso ir mais longe. Em Arcos de Valdevez ou em Melgaço, à medida em que os cerros vão fugindo com as casas pela encosta acima, a virgiliana doçura das vertentes e dos vales vai perdendo a feminil dormência na ossatura plutónica dos montes. E Soajo ou Castro Laboreiro surgem aos nossos olhos como duas aldeias transmontanas.
Mas a desgraça não é essa. A desgraça é que nós somos as raízes da terra onde nascemos. E a nossa é linda de mais para que se possa viver longe dela. Onde quer que os passos nos conduzam, sempre a sua imagem nos persegue como uma obsessão – ou uma bênção… E é quando estamos para deixá-la que de todo nos rendemos ao aceno telúrico desse chão que nos faz voltar para trás a proa da quimera que nos trouxe. Nesses dias, gostamos de uma maneira diferente, até das árvores e dos bichos. Lembro-me de meu irmão Alberto abraçado ao tronco da velha macieira da quinta: – “Adeus, macieira das doces!...”
E compreendo a razão por que, oito meses após a minha chegada ao Rio, todas as manhãs acordo pensando no “Desterrado” do nosso Soares dos Reis.”
- in revista “Padrão”
(Fotos cedidas por Mena Duarte)